Em passeata, histórias de famílias que querem fim da destruição
Organizada por 20 entidades nacionais que exigem fim da agressão ao Líbano e retirada do embaixador brasileiro de Israel, manifestação teve presença de líbano-brasileiros que vêem país ser novamente destruído
Milhares de pessoas começaram, por volta das 11h da manhã de domingo, a descer a Avenida Brigadeiro Luís Antônio em direção ao Ibirapuera, em São Paulo. Era a “Passeata pela paz no Líbano e na Palestina”, que reuniu cerca de 5 mil pessoas, segundo a Polícia Militar. Segundo a organização do evento, a presença pode ter chegado a até 10 mil pessoas. Aliada aos números, que são significativos, a mensagem passada pela manifestação de domingo - que pedia paz no Líbano e na Palestina, a retirada do embaixador brasileiro de Israel e a recusa do governo brasileiro em assinar acordo de livre-comércio entre Israel e o Mercosul - tinha força nos propósitos que juntaram libaneses, descendentes e brasileiros que julgaram justo o fim dos ataques ao país mediterrâneo. Em meio a partidos políticos, PSTU e Psol, e grupos de apoio e solidariedade, como o Comitê de Solidariedade aos Povos Árabes, estavam familiares e descendentes desesperados por notícias e um cessar-fogo que pode significar a salvação da vida de conhecidos e parentes. Era um mar de bandeiras libanesas que caminhou da Avenida Paulista, onde começou a passeata, até o início da Avenida República do Líbano, de frente para o lago do Ibirapuera, do qual vinham diversos gritos e cantos que pediam com urgência o fim imediato dos ataques de Israel a cidades libanesas. Os gritos de paz entoados vinham em português e árabe. Falar e gritar em árabe ali era uma demonstração de força, tanto nos discursos que vinham do carro de som ou no diálogo abafado de libaneses e descendentes durante o caminhar da passeata. Mas as palavras não bastavam e a simbologia de rituais e de práticas árabes e islâmicas também reivindicava o fim da agressão e respeito à cultura que repetidamente é retratada como sinônimo de violência. Mulheres e meninas usavam seu hijab, homens e mulheres seguravam faixas escritas em árabe. Alguns exaltavam o Hizbollah, outros não queriam nem saber do Hizbollah. Todos queriam o fim de mais um capítulo de destruição que Israel impõe à região travestida de proteção a seu Estado. Anwan Houi, que vive no Brasil há 31 anos, nasceu e passou a infância no Líbano, em uma chácara perto da cidade de Tiro. Ainda se lembra dos momentos em que pôde aproveitar o Mediterrâneo. Afirma que podia-se ir a pé até Qana. Hoje essa caminhada não é tão segura. Qana e Tiro, que ficam no sul do Líbano, foram duas das cidades mais destruídas nos ataques israelenses. Em Qana, no dia 30 de julho, os israelenses realizaram a incursão mais violenta, matando 54 civis, entre eles 37 crianças. Mas as lembranças de sua época no Líbano, país que deixou para se casar e viver em São Paulo, também não são de todo agradáveis. Confessa que sempre teve medo dos judeus israelenses. “(...) Lembro que quando morava no Líbano, tinha horror aos judeus israelenses e à guerra, pois eles sempre bombardeavam e atacavam nossas vilas e a região do sul do Líbano. Lembro que me escondia debaixo da cama por causa dos aviões. Meus pais me falavam para que, se achasse uma bala ou algum doce, que não comesse, pois podiam estar envenenados”, diz ela protegida por seu hijab do sol forte da tarde de São Paulo. A infância da hoje senhora Houi expõe a história de terror que começa em 1948 e que tem mais um de seus capítulos de tensão e clímax escrito na atual agressão israelense ao Líbano, e o seu dia-a-dia na contínua humilhação imposta aos palestinos. Milton Hatoum, brasileiro e escritor, acredita que este é mais um erro de Israel que se junta à imensa coleção de erros que se inicia com a criação do país. “Essa é uma das maiores catástrofes desde 1948, quando Israel expulsou os palestinos. Este é um novo erro e eles estão refilmando 1982. (Isso porque) Israel só cria refugiados, palestinos, libaneses, muitos deles estão na Jordânia. É um erro gravíssimo”. Israel, a cada passo que dá e de forma violenta, está acabando com qualquer possibilidade de coexistir no Oriente Médio sem estar armado até os dentes e financiado pelos Estados Unidos e convenientemente afagado por europeus. “Os dois povos têm coisas em comum, mas quando Israel perceber isso, pode ser tarde demais. Israel joga fora qualquer possibilidade de uma política de boa-vizinhança”, diz Hatoum. Enquanto árabes ao redor do mundo fazem passeatas, tentam tirar uma posição política para fazer seus governos pressionar Israel, enquanto Ehud Olmert, primeiro-ministro israelense, e Condoleeza Rice, secretária de Estado dos Estados Unidos, se encontram com apertos de mão e sorrisos, enquanto líderes de países árabes se reúnem e tentam tirar uma posição política em meio ao furacão, sem sorrisos, os libaneses passam fome, não têm água para beber, não têm eletricidade ou facilidades de comunicação, não podem contar seu desastre ao mundo ou pedir ajuda. Há poucos lugares seguros no Líbano atualmente e ser libanês hoje é correr um grande risco de morrer tragicamente por bombardeios pouco precisos e que ainda trazem substâncias tóxicas, como confirmam relatos de médicos que atendem feridos pelos ataques de Israel. Até o momento, as estimativas mais tímidas dão conta que cerca de 1000 libaneses morreram devido a ataques israelenses, 80% destes são civis não-militantes, portanto deveriam estar protegidos por convenções internacionais que regulamentam a guerra. Dos mil mortos, 300 são crianças. Um terço dos libaneses, cerca de um milhão de pessoas, estão refugiados dentro do país, pois foram expulsos de suas casas. “Os libaneses se sentem com se estivessem presos dentro de casa”, desabafa Anwan Houi. Do lado israelense, 100 mortos, sendo 40% civis, alguns deles árabes, e todo o resto soldados do exército. Ali Jarib, que acompanhou a passeata da cabine do carro de som, tem família e conhecidos na região do sul do Líbano. Também tem dificuldades de se comunicar e saber notícias. A última vez que falou com alguém foi há dez dias e não havia nenhuma novidade, apenas soube que estava tudo destruído, que faltava comida e água e qualquer possibilidade de socorro. “Alguns poderiam vir para o Brasil, pois têm passaporte, mas a maioria não tem e vão permanecer no Líbano. E mesmo dentro do Líbano minha família e conhecidos têm dificuldades de se deslocar, pois há pessoas de muita idade, que têm dificuldades de se movimentar”, explica Jarib. Ao lado de Jarib, uma senhora de 60 anos se destacava, parecia incomodada com o sol forte e por isso se protegia dentro do carro. Fátima Masad, palestina, está no Brasil e seu aniversário de imigração, 40 anos, coincide com a ocupação de 1967, quando Israel invadiu os territórios que haviam sobrado aos palestinos. Ela também não tinha notícias dos seus. Ela fala pouco português, mas segurava uma imponente bandeira do país ao qual não é permitido existir. Anwan, a mulher que se escondia debaixo da cama com medo de aviões israelenses, também não tem notícias de uma irmã, com seus seis filhos, que mora em Tiro. Ela diz que sua irmã estava no lugar que os comandos israelenses invadiram. “Havia uma família vizinha e eles foram atacados e mortos. A cidade está cheia de civis, são pessoas que não tem para onde ir, ou então que se recusam a deixar a própria cidade. E quem tenta fugir, não tem como ir. Eles destruíram estradas e a ponte que ligava o Líbano à Síria”. O último contato que Houi teve com o Líbano foi cinco dias atrás, com uma outra irmã que está nas montanhas. “Ela disse que fazia três dias que havia falado com minha irmã de Tiro. Não tenho notícias, não sei como está. As pessoas me dizem que estão horrorizadas, em pânico, e pedem que nós daqui rezemos por eles”. Em qualquer idioma, por qualquer religião. *(Corrigida às 23:39 do dia 7/8)