Evento discute charges do profeta Muhammad
O debate “As charges de Mahomé e a liberdade de expressão”, realizado na última segunda-feira, apresentou opiniões divergentes e polêmicas quanto à questão das charges do profeta Muhammad, as manifestações de repúdio que gerou e como se colocam no contexto político do Oriente Médio.No debate da última segunda-feira, “Mahomé e a liberdade de expressão”, os convidados (o escritor Contardo Calligaris, o colunista da Folha de S. Paulo Demétrio Magnoli, o jornalista Reinaldo Azevedo e o vice-presidente do Instituto da Cultura Árabe Murched Taha) preferiram, por acreditar que esse não era o tema central, deixar de lado a questão da liberdade de imprensa. Apesar de todos colocarem a discussão a que se propunha o evento em segundo plano, cada um justificou de uma maneira. O escritor Contardo Calligaris, que fez a abertura inicial disse que a questão da liberdade de imprensa estava fora de lugar porque, para ele, as charges eram inócuas e inofensivas, afinal, já havia uma tradição européia de figurar Muhammad. Já Demétrio Magnoli, que fechou o debate, explicou que a questão da liberdade de expressão jamais esteve em causa, mas foi posta em causa por narrativas que têm o interesse de perpetuar o embate entre o Ocidente e o Islã. Os argumentos, a partir daí, se dividiram entre aqueles que defenderam posições mais conservadoras e à direita e outros que procuraram privilegiar uma análise histórica e política dos fatos. Dos quatro participantes, Contardo foi o que mais se afastou de análises políticas. O escritor procurou fazer uma ‘análise’ dos povos muçulmanos para explicar a reação às charges, que ele classifica como uma violência exagerada, dirigida por governantes autoritários. A base da argumentação de Contardo estava na cisão dos indivíduos das sociedades muçulmanas, que tinham que se digladiar entre, em suas palavras, a “sedutora sociedade ocidental” e o “revanchismo da tradicionalista cultura islâmica”. “Existe um potencial revolucionário do iluminismo republicano que foi transmitido para as elites norte-africanas que foram as que produziram os movimentos de libertação nacional. Muitas delas se formaram em universidades francesas, fossem marxistas ou não”. Ele explica que era previsível e esperado, pelo lado dos ex-colonizadores, que as novas nações libertas, e governadas por elites bem educadas na Europa, funcionassem sob modelos democráticos. “O que não era previsto é que ele recuperasse seus valores tradicionais. A idéia era que tanto à esquerda quanto à direita, todo mundo estava convencido que todos deviam ser iluministas, que nem as elites que haviam estudado na Europa. Essa volta ao passado do mundo islâmico, ou pelo menos a decepção ocidental quanto aos efeitos da sua expansão da cultura, leva a um conflito cultural”. Ele acredita que o conflito cultural se tornou popular e violento a partir do momento em que as populações árabes migram aos milhões para a Europa e ali desenvolvem a internalização do conflito. “O conflito entre essas diferenças é internalizado pela própria inércia sedutora da cultura ocidental. Não é uma colonização ativa, é a exposição da cultura mais sedutora. Ao mesmo tempo, pelo próprio fim da colonização, surge o revanchismo cultural islâmico, uma contradição interna em milhões de pessoas, pessoas partidas ao meio”. O escritor mergulhou profundamente na análise do indivíduo que esqueceu de mencionar uma só vez o contexto político do Oriente Médio. Fez um discurso extremamente essencialista, como classificaria Magnoli. A seguir, falou Murched Taha, vice-presidente do Instituto da Cultura Árabe. Ele procurou fazer uma análise com mais ênfase na geopolítica e no contexto da violência que atinge a região desde o século XVIII, das grandes colonizações européias. Em oposição a Contardo, procurou enfatizar que as razões que levam o indivíduo à violência não surgem do nada, mas de uma realidade que não pode ser ignorada. “Os europeus colonizaram o mundo árabe. Nessa época, o árabe era proibido de falar árabe no Marrocos, por exemplo. Depois, através de um tratado de Sykes-Picot, entre ingleses e franceses, eles dividiram o mundo árabe de acordo com seus interesses”. Taha também lembrou sobre o imbróglio e o desastre diplomático das ex-metrópoles que levaram à criação de um Estado judaico armado com armas nucleares em plena Palestina, origem de descontentamento e conflitos até os dias atuais. “Essa é a verdadeira razão desse conflito, depois que os árabes foram colonizados pelos turcos e pelos europeus, eles nunca tiveram chance de se expressar”. O jornalista Reinaldo Azevedo, diretor editorial da revista “Primeira Leitura”, seguiu uma linha mais próxima de Contardo e fez a defesa do conflito de civilizações, principalmente na vertente do discurso do historiador Bernard Lewis. O centro da argumentação de Reinaldo era a superioridade da cultura ocidental sobre as demais. “A verdade para mim é que a cultura ocidental soube metabolizar e vencer as suas brutalidades de forma a reconhecer o outro, a reconhecer o indivíduo. As visões totalitárias de mundo não vêem indivíduos, mas vêem grupos”. Ele usa como exemplo de superioridade o fato de não haver uma democracia árabe sequer no mundo, e pelo fato de a única democracia no Oriente Médio, em sua opinião, ser a de Israel, ainda que ele admita que ela não inclui palestinos. Para ele, os palestinos não trabalham para construir a democracia e por isso devem ser alijados de qualquer participação ou possibilidade de ter voz. “Eu não quero fazer choque de civilizações coisa nenhuma, tese originalmente desenvolvida pelo Huntington. Não comungo das idéias, mas o que é feita da democracia árabe, porque Israel é o único país democrático do Oriente Médio. ‘Ah, mas não é democrático para os palestinos’. Precisamos ver até que ponto aqueles palestinos que estão lá estão lutando pela democracia. Quando vi o Hamas ganhar as eleições na Palestina fiquei muito preocupado. Como pode promover a democracia forças que originalmente não estão comprometidas com a democracia”. Depois da visão do jornalista, falou o colunista da “Folha de S. Paulo”, Demétrio Magnoli. Para ele, toda a cobertura sobre as charges e suas manifestações tiveram falhas porque seguiram a linha que interessa tanto ao que ele chamou de jihadistas, pessoas que suam o islã para promover uma luta própria, e à Casa Branca: a narrativa do choque entre o ‘nós’, ocidente, e o ‘eles’, islã. “Os jornais europeus jamais estiveram sob o risco de censura. O país onde existe o maior risco de censura hoje é nos Estados Unidos, pois se sabe que o ‘Washington Post’ não publicou uma matéria sobre a rede de tortura secreta da CIA a pedido do governo americano. Então, a pergunta é por que ela foi posta em causa?”. Para Magnoli a narrativa que se construiu foi a de duas entidades que, aparentemente, têm uma existência real, uma essência cultural e que aparentemente estão em uma guerra. Aparentemente, diz ele, porque na verdade essa existência separada e conflitante é construída pelos interesses dos dois lados, jihadistas e Casa Branca. “Para mim, só tem uma charge que vale a pena discutir, as outras são realmente inócuas. O problema de figurar Maomé não é problema de todos, mas dos muçulmanos. A charge que tem problema para todos é a charge que apresenta Maomé com um turbante em forma de uma bomba. Essa charge não tem nem, duas, nem três, nem quatro nem cinco interpretações. Essa charge tem um significado, está dizendo que muçulmanos são terroristas. Não está sugerindo que Osama bin Laden está seqüestrando o islã para fazer terrorismo, mas que todos os muçulmanos são terroristas”, explica o colunista. Ele vai adiante e diz que a posterior publicação das charges por jornais europeus, supostamente em defesa da liberdade de expressão e de valores ocidentais, na verdade expressa a narrativa construída de uma invasão islâmica sobre a Europa. “A charge diz que o islã é uma entidade fixa no tempo, congelada. Mas há uma forma muito mais culta, erudita e sofisticada de dizer isso, como faz Bernard Lewis, o arabista do ocidente. Ele nos diz que o islã deve ser visto como uma cultura e que o jihadismo de Osama bin Laden é islâmico. Isso nos proíbe de discutir o terror jihadista como fenômeno histórico e político, e nos obriga a discuti-lo como um fenômeno cultural, ou seja, uma essência do que é e nunca poderá deixar de ser o islã, e nos contrapõe a algo que é e nunca deixará de ser o Ocidente. E essa discussão essencialista, que é falsificadora da história e da política, interessa ao jihadismo e à Casa Branca”.