Um olhar brasileiro sobre os palestinos em “A Chave da Casa”
Estreia no dia 29 de março, no Rio de Janeiro, e em 2 de abril, São Paulo (também será exibido em Brasília), o documentário “A Chave da Casa”, produção brasileira. O filme chega em um momento oportuno, pois a história contada nas telas é a chance de conhecermos as consequências que alguns palestinos viram imputadas a suas vidas após a invasão ao Iraque - onde alguns viviam há décadas -, que acaba de completar seis anos.
Com a derrocada de toda a estrutura social e de governo do país, tornaram-se um dos grupos perseguidos por milícias xiitas com projetos muito próprios de poder. Não é difícil ouvir deles a definição da invasão como a 2ª catástrofe. Expulsos, passaram cinco anos no deserto da Jordânia. No final de 2007, 107 desses palestinos recomeçaram suas vidas no Brasil. A experiência no deserto é difícil de ser imaginada. Pachoal Samora e Stela Grisotti, os realizadores da obra que fará parte do 14º É Tudo Verdade, sentiram isso de perto. Viveram a experiência durante quatro dias. Por problemas técnicos, conseguiram registrar apenas as últimas 48 horas do campo de refugiados de Ruweished. “Não há como aquecer as casas durante o frio. Quando é frio, é frio, quando é calor, é calor. O que vi também é que havia muitos escorpiões, peguei tempestades de areia. É uma outra natureza. Uma secura, uma aridez. Nos trajetos de Aman ao campo, andávamos cinco horas com a mesma paisagem. Às vezes via barracas de beduínos no caminho. E quando chegamos, aquele lugar terrível. ‘Como as pessoas sobrevivem cinco anos neste lugar’, pensei”, explica Stela. A aridez do deserto é a marca do Ato I, os palestinos fechando o campo na Jordânia. É o pano de fundo sobre o qual falam, expõem, manifestam palavras. Em alguns poucos minutos, os cinco personagens “escolhidos” resumem a vida no campo, a vida palestina. “O que fizemos lá foi um recorte do que se leva e do que se deixa. O lugar era tão difícil e tão inóspito, mas mesmo assim deixam-se jardim, gatos, histórias de amor, lembranças”, diz Paschoal. Os “escolhidos” vai entre aspas de propósito, pois no pouco tempo que a equipe – ainda o diretor de fotografia Dado Carlin e a produtora Krishna Mahon - teve para fazer o registro dessas horas finais, os personagens apresentaram-se sozinhos. “Chegamos ao ponto de fazermos a entrevista falando apenas palavras como, place, country”, revela Stela. O projeto inicial de “A Chave da Casa” saiu da cabeça de Stela, atraída pela temática do refugiado, um dos desdobramentos do trabalho que fez em “Vale a pena sonhar”, sobre Apolônio de Carvalho e a geração de 68. Originalmente, o projeto retrataria refugiados em geral. Com esse formato, ganhou o edital Janela Brasil, da TV Cultura. A pesquisa, de certa forma, seria jogada fora após a descoberta da vinda desses palestinos ao Brasil. “As horas no campo foram intensas. O que foi uma limitação - queríamos ficar cinco dias, mas por problemas, documentamos apenas as últimas 48 horas - acabou sendo determinante. O tempo estava suspenso, os quatro anos anteriores foram potencializados nos últimos dois dias. E decidimos deixar de lado a pesquisa que tínhamos feito”, explica Paschoal. Na vinda ao Brasil, o Ato II, a produção decidiu esperar um período. “Decidimos não fazer uma coisa jornalística, pegando a chegada, mas esperar e ver como ficariam os rituais cotidianos deles após nove meses”, diz o diretor. Nesse tempo, muita coisa aconteceria, e a esperança e expectativa do Ato I seriam transformadas em melancolia, decepção, revolta. “Olha, eu estava com uma expectativa bem diferente. Achava assim: ‘ah, que legal, eles vão para o Brasil, vão se dar bem’. Ingenuamente, estava com uma expectativa de que a coisa ia ser melhor”, revela a diretora. Não foi. O Ato II mistura silêncio - “coisas não ditas às vezes valem mais do que as ditas”, opina Paschoal – caminhadas por diferentes paisagens brasileiras – Mogi das Cruzes, Pelotas, Florianópolis – e reticência, decepção. “Alguns dos que filmamos em Ruweished ficaram reticentes. Um deles disse ‘eu só assino se vocês se comprometerem a colocar que ganhamos 350 reais’. No final, colocamos”, diz a diretora. Dentro do Ato II, há um elo final amarrado por um diálogo entre dois dos palestinos vindos ao Brasil. Um, destinado a Pelotas, o outro, a Mogi das Cruzes. O encontro entre os dois foi arranjado pela produção. O lugar em que se sentam para conversar é um salão usado para bailes da terceira idade em Pelotas. “Muitos perguntam se aquilo é uma encenação. ‘De quem é o texto?’. Não houve encenação. O diálogo eles fizeram ali, na hora. E foi feito todo em árabe, a equipe não entendia nada. Só fui saber exatamente o que disseram três meses depois, quando recebi a tradução”, Stela. Paschoal vê no diálogo o momento em que o documentário acontece. “O documentário é interessante assim: a gente controla os meios, a gente cria uma situação para a câmera, mas o documentário começa quando perdemos o controle sobre o que estamos fazendo”. Os palestinos delineiam ali uma ironia recheada de descrença, mas também expõem o sentimento de dignidade e de orgulho por suas identidades palestinas. Descrença porque passaram cinco anos vivendo em um campo no deserto, sendo os refugiados dos refugiados. Impedidos de voltar à Palestina, não receberam abrigo de um país árabe e ainda sofrem nas mãos dos departamentos da ONU que lhes dão apoio na mesma medida em que não lhes dão a solução. No fim, tentam atenuar uma situação que não pode ser atenuada. Intuitivamente, jogam na tela um diálogo cheio de críticas, comprimem os últimos 60 anos de suas vidas, individuais e coletivas, em pouquíssimos minutos. Nas entrelinhas, a farsa israelense, a farsa árabe, a farsa da ONU. Provocaram os documentaristas. A audiência também será provocada. A maior qualidade de “A Chave da Casa” é ser o primeiro documentário de maior fôlego a trazer um discurso e reflexões vindo de palestinos, mas a partir do interior da sociedade brasileira. Não há melhor ponte do que a experiência desse grupo que sofreu as consequências desse conflito supostamente “incompreensível” aos olhos de brasileiros e realizou um périplo por parte do Oriente Médio, e agora vivem as agruras da sociedade brasileira, o temor em meio a uma distribuição econômica desigual, a indignação diante de um Estado (entenda-se um governo do Brasil mais a ONU) ausente e que lhes deixam no abandono, o temor de não ter a capacidade de alimentar os filhos. “Vejo neles um dom de oralidade, isso que vem de uma tradição oral dos árabes. Eles têm um domínio muito forte de sua história, das histórias de suas vidas. A senhora que entrevistamos, ela tem um dom, uma dignidade. Ela é uma musa. Apesar de toda a sacanagem histórica, eles têm um brilho, algo em comum conosco brasileiros”, me explica Paschoal, em meio à correria que antecede os preparativos do lançamento de seu filme. Stela revela que o filho dessa senhora morreu em um incêndio no campo, culpa das casas quentes, do ambiente pouco afeito a controle do deserto em que foram colocados. Para quem ver o documentário, a musa será o lamento e a alegria. E dirá, olhando para a câmera: “uma hora rimos, outra choramos”. No Brasil, também... no Brasil, também. Veja dias e horários de exibição de “A Chave da Casa”: UNIBANCO ARTEPLEX (RIO DE JANEIRO - RJ) - 29/03 - 18H00 UNIBANCO ARTEPLEX (RIO DE JANEIRO - RJ) - 02/04 - 16H00 OI FUTURO (RIO DE JANEIRO - RJ) - 03/04 - 15H00 CINESESC (SÃO PAULO - SP) - 02/04 – 21H00 CINESESC (SÃO PAULO - SP) - 03/04 - 15H00 CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL (SÃO PAULO - SP) - 04/04 - 13H00 CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL (BRASÍLIA - DF) - 24/04 - 16H30 CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL (BRASÍLIA - DF) - 25/04 - 18H30