Milton Hatoum: “A Mostra Mundo Árabe de Cinema é fundamental para o diálogo e compreensão de culturas”
A literatura, em sua relação com o cinema, estará presente na sessão “Cinema e Literatura”, na 10ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, que começa quarta-feira, dia 12, em São Paulo. O escritor Raduan Nassar será homenageado com a exibição do filme “Lavoura Arcaica” e a presença do escritor Milton Hatoum, que conversará com o público. Em entrevista ao ICArabe, Hatoum fala da importância da Mostra para o diálogo e compreensão de culturas. Leia a seguir.
ICArabe - O ICArabe promove este ano a 10ª edição da Mostra Mundo Árabe de Cinema. Poderia comentar a iniciativa do Instituto para a valorização da cultura árabe e o diálogo com a sociedade brasileira?
Milton Hatoum - É um evento importantíssimo. A leitura crítica do passado e do presente de uma sociedade passa pela cultura. Por isso considero essa Mostra fundamental para o diálogo e compreensão de culturas. Na sociedade brasileira há uma forte presença da cultura árabe. Não me refiro apenas aos milhões de brasileiros de origem síria ou libanesa, mas também à língua portuguesa, à arquitetura, à música e até mesmo ao mais inventivo e complexo romance da nossa literatura: Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Nesse romance há personagens árabes dotados de beleza e dignidade. E há também um vocabulário antigo, herança do português medieval, que, por sua vez, herdou muita coisa da língua árabe.
ICArabe - Ao longo dos 10 anos da Mostra, os países árabes vivenciaram diversas mudanças, que concentraram as atenções do mundo. Mas o desconhecimento, a visão orientalista e os preconceitos em relação a árabes e muçulmanos ainda persistem. Como o cinema e a literatura podem impactar os momentos históricos que os países árabes têm vivenciado nos últimos anos e ajudar a compreensão em relação a este mundo árabe em transformação - por ele mesmo e pelo Ocidente?
Milton Hatoum - Há muito tempo o mundo árabe e a religião islâmica são representados por estereótipos e clichês negativos. Dezenas de filmes de Hollywood fizeram isso... Uma parte nada desprezível da imprensa norte-americana e europeia faz isso. O cinema e a literatura árabes usam uma linguagem que expressa uma experiência interna, uma vivência de dentro, não falseada nem edulcorada, muito menos estereotipada. Por isso dizem uma verdade profunda, que é a verdade das relações humanas e do tempo em que vivemos. O filme “Paradise Now” e o poema “Cédula de identidade” (de Darwich) dizem muito mais sobre a tragédia do povo palestino do que milhares de artigos pretensamente analíticos sobre o Oriente Médio.
ICArabe - Como poderíamos explicar hoje a importância de Raduan Nassar para a literatura e as representações de cinema no Brasil?
Milton Hatoum - O que explica a relevância de Raduan é a qualidade literária de seus livros: o romance “Lavoura arcaica”, a novela “Um copo de cólera” e os contos reunidos no volume “Menina a Caminho”. Do ponto de vista formal, estético, penso que Raduan é um dos grandes escritores contemporâneos. Não menos importante é o drama humano narrado em cada texto. Luis Fernando Carvalho topou o desafio de dirigir a adaptação do “Lavoura Arcaica”. A meu ver, o resultado é excelente. O filme ganhou dezenas de prêmios e atraiu leitores.
ICArabe - Algumas de suas obras estão sendo adaptadas para o cinema, HQ e TV. De certa forma, a entrada nesses universos distintos vai atingir públicos diversos. Como o senhor vê essa ampliação de sua criação literária e a relação entre essas artes?
Milton Hatoum - Não pensava que haveria tantas adaptações. Não esperava nada disso... Cada arte tem uma linguagem específica, e cada artista usa seu próprio estilo. Já não é mais o romance que está no livro de história em quadrinhos, na minissérie e nos filmes. É uma tradução do romance para outra linguagem... Uma invenção que se origina no romance mas expressa uma visão estética e até histórica do artista gráfico, do cineasta, do diretor de teatro.
ICArabe - O que o senhor diria que é importante para fazer uma obra de um livro seu? Um objeto, uma paisagem? O que poderia representar em uma cena o modo como o senhor enxerga a relação entre literatura e cinema (em um livro seu ou não)?
Milton Hatoum - O mais importante é gostar do texto que será adaptado, entender e sentir profundamente esse texto e, claro, saber reinventá-lo com uma outra linguagem. Não sei dizer como uma cena ou paisagem de um romance poderia ser representada num filme. E isso por uma razão: adoro cinema, mas não sou cineasta.
ICArabe- Quando o senhor pensa no movimento trágico de populações árabes hoje (Síria, Líbano, Egito), como vê essa realidade, tendo a própria construção que fez da sua experiência pessoal, de sua família, da migração árabe?
Milton Hatoum - É uma realidade das mais complexas e certamente está relacionada com interesses geopolíticos e econômicos. O fanatismo religioso agrava a situação não apenas na Síria, mas também em outros países da região. Minha experiência, enquanto filho de um imigrante libanês, é mais voltada ao convívio com brasileiros de várias origens. Nunca estudei em escolas religiosas, minha família não frequentava comunidades ou clubes de imigrantes, nem fui obrigado a seguir essa ou aquela religião. A lealdade cega e incondicional a uma religião ou Estado pode trair princípios éticos, de justiça e solidariedade. Decidi aderir a esses princípios e recusar qualquer dogma, seja religioso ou político.
Para informações sobre a Mostra http://www.mundoarabe2015.icarabe.org/