Estudo demonstra viés contra palestinos em cobertura jornalística
Por Isabelle C. Somma de Castro, membro da Diretoria do ICArabe
Em maio de 2001, fiz parte de um grupo de jornalistas brasileiros que viajou a Israel para escrever sobre a “Terra Santa”. Na verdade, era um esforço de marketing para levar mais brasileiros para o país, que tinha visto os turistas minguarem. Alguns meses antes, numa demonstração de força e desrespeito aos palestinos, o então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon entrou na Esplanada das Mesquitas e provocou o caos. Ali iniciou-se a segunda Intifada, a revolta contra a ocupação mais longa da história contemporânea.
Durante a viagem, muitos de nós ficamos perplexos com o que vimos. Não poderíamos visitar a Igreja da Natividade, um dos pontos altos dos cristãos, por causa da revolta. Um montão de coisa era proibido. E por que raios alguém iria para lá nessa situação? Como nós, jornalistas, escreveríamos uma matéria sobre turismo na região com tanta segregação e violência promovida pelo Estado, com tantas questões de segurança, com tanta gente sofrendo? Refletimos sobre isso, num jantar. A representante do ministério do turismo israelense, uma carioca, começou a se irritar com a discussão. Disse que para o brasileiro, isso não interessava – não deixa de ser irônico alguém que vem do Rio de Janeiro falar nesses termos. Um jornalista do grupo, para quebrar o clima ruim, pediu mais vinho. A representante do governo, que pagava a conta, disse que tinha acabado o vinho do restaurante. A situação foi extremamente constrangedora.
A viagem me impactou, mas por outros motivos. Por que a cobertura da imprensa brasileira era tão fora da realidade? Um tempo depois de voltar ao Brasil, após 11 de setembro de 2001, decidi pesquisar o assunto. Optei por fazer uma comparação entre como foi a representação de árabes e muçulmanos antes e depois dos atentados nos EUA, a partir de reportagens nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Li as edições de um mês de cada jornal em um período anterior e posterior a 11 de setembro. Aqui estão alguns dos meus achados:
1) A maior parte do que se publica sobre árabes e muçulmanos nos dois jornais brasileiros é relacionado à questão palestina. Em um mês escolhido de 2001, foi de cerca de 30% do total da cobertura relacionada aos dois temas, enquanto em 2002 foi de cerca de 70%, considerando que no período ocorria uma incursão militar israelense na Cisjordânia.
2) Do ponto de vista temático, a violência se sobrepõe a qualquer outro tema, seja política, economia, cultura etc. Violência dominou entre 39% e 60% do total da cobertura relacionada a árabes e muçulmanos nos quatro recortes estudados, parte de março e de abril de 2001 e o mesmo período de 2002 em ambos os jornais.
3) O uso de palavras como “resposta” e “retaliação” estiveram sempre relacionados a Israel e nunca aos palestinos. Israelenses só respondem, palestinos só atacam. Isso parece inverter o papel de quem é vítima, que tem seus territórios ocupados pelo período mais longo da história contemporânea.
4) O mesmo ocorre com o vocábulo “autodefesa” e a ideia de “ter o direito de se defender”, que são usados somente para o lado israelense. Dessa forma, se torna implícito que o outro lado tem o direito de ser bombardeado, mas não tem o de se defender.
5) De um lado há um exército bem treinado – o serviço militar é obrigatório para jovens israelenses de ambos os sexos. Portanto, em Israel, quem não está no exército e fortemente armado, está na reserva, com acesso a armas. Isso não aparece.
6) Do outro tem civis que vivem sob uma ocupação e uma população que tem cidadania israelense, mas não tem os mesmos direitos, como mostra a questão de Sheikh Jarrah – judeus têm direitos sobre terras adquiridas antes de 1948, os palestinos, não. Isso também não aparece.
7) O sintagma “territórios ocupados" estava entrando em extinção no início dos 2000. E quando era usado, se empregava de maneira confusa fazendo com que o leitor desavisado pensasse que eram os palestinos que ocupavam os territórios e não os israelenses. Atualmente, parece a palavra se extinguiu de vez. Percebo que “ocupados” anda desaparecida da cobertura jornalística brasileira. Mas, a ocupação israelense continua e, infelizmente, avança. Veículos pró-Israel usam “disputados”, apesar de não haver disputa, já que as resoluções da ONU são bem claras sobre os direitos dos palestinos.
8) As origens do conflito, Balfour, a Nakba, o desrespeito sistemático de ISRAEL às leis internacionais, da Convenção de Genebra etc. não são sequer mencionados. Isso pode dar a impressão de que se trata de um conflito religioso e não político e que só a repressão basta. O direito dos que sofrem opressão não é sequer mencionado. Outro item totalmente ausente.
9) Nenhuma menção aos cristãos palestinos. Posso garantir que eles existem e são gente como a gente, assim como os muçulmanos palestinos.
10) Os palestinos não têm voz nos jornais. Enquanto há entrevistas e declarações com uma série de membros do governo israelense e populares, o lado palestino tinha somente declarações de Arafat ou de algum outro membro da OLP, como o também falecido Saed Barekat ou Hannan Ashrawi. O mais interessante é que, invariavelmente, publicava-se um artigo do jornalista irlandês Robert Fisk para dar o lado palestino.
11) O sintagma “infraestrutura do terror” foi usado acriticamente no recorte estudado para justificar o bombardeio de regiões densamente povoadas de Gaza. Ou seja, o governo israelense dizia que só queria acabar com tal infraestrutura, quando todos sabemos que mal há infraestrutura básica para as pessoas viveram em Gaza. O sintagma surgiu em 1982, ressurgiu em 2000 e pode reaparecer a qualquer momento. O sintagma era muito usado com os verbos “desmantelar” e “erradicar”, apesar de eles não serem sinônimos de bombardear.
Essas são algumas das conclusões da dissertação de mestrado “Orientalismo na Imprensa brasileira”, de minha autoria, orientada pelo professor Mamede Jarouche e aprovada com distinção e louvor em 2007 no Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Ela pode ser baixada gratuitamente em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8154/tde-01092011-102913/pt-br.php
Apenas para concluir com uma nota feliz nesses tempos difíceis: neste mês brindarei duas décadas com o rapaz gentil que sugeriu o vinho naquela desagradável noite em Jerusalém.
_________
Crédito da foto: AFP
_________
Isabelle C. Somma de Castro é pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP), do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Concluiu pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. É doutora em História Social (USP) e mestre pelo programa de Língua, Literatura e Cultura Árabe do Departamento de Letras Orientais (USP).