A vida de uma pintora fora de lugar
A artista plástica Inna Jansen nasceu na Rússia, mas com apenas três anos saiu do país. Desde então, sua vida foi permeada por um constante movimento. Ela diz que é a marca da guerra, que está explícita nos seus trabalhos, como em “Waiting”, quadro que doou ao acervo do Icarabe, e “Guantánamo”, sobre o Iraque.Inna Jansen mora no Brasil há oito anos. Em seu apartamento, no centro de São Paulo, está seu ateliê, e isso fica claro nas paredes dos cômodos, onde se espalham pinturas sobre as mais diferentes realidades. No início de nossa conversa, a artista plástica disse não se sentir bem dando entrevistas, pois não sabe se consegue transmitir com palavras as realidades que faz transbordar em seus quadros. Prometi a ela, então, que faríamos a entrevista como uma conversa informal. Jansen nasceu na região dos Montes Urais, Rússia, na década de 40, e deixou o país com apenas três anos. Ela é filha de judeus que fugiram da Polônia um pouco antes de a 2ª Grande Guerra começar. “Meus pais eram judeus poloneses, ou melhor, judeus da Polônia. É uma caracterização melhor. Não sei o que acontece, mas os judeus da Polônia não se consideravam poloneses. Não eram como os judeus alemães, que realmente achavam que eram alemães”. De seu pai, “um socialista”, Inna acredita que herdou um imenso humanismo. “Acredito que esse humanismo penetrou na família e, espero, em mim”. Além das lembranças deixadas por seu pai, Inna diz ter em sua personalidade uma importante marca da Rússia. O pouco tempo que viveu por lá, do qual ela pouco deve se lembrar, imprimiu nela um sentimento de identidade em relação à cultura daquelas terras. “A literatura russa, a música russa, as idéias clássicas da Rússia”, explica, “não entendo como elas se manifestam, mas vejo que essas marcas estão em mim”. Da Rússia, Inna foi para a Bélgica, e de lá migrou com a família para o país no qual receberia toda a sua educação, a Austrália. Chegou ao país na década de 50, quando tinha oito anos. No entanto, afirma, jamais se sentiu australiana. “Fiquei por lá até que tivesse idade suficiente para ter um passaporte e pudesse sair”. O sentimento para ela era que não pertencia àquele lugar.“Eu fui à escola com pessoas que se pareciam, todas, com a Nicole Kidman. Elas eram altas, magras e eu parecia uma imigrante. As pessoas sempre me perguntavam de onde eu era. Eu nunca me senti parte da Austrália”. Viveu, desde então, e seus quadros são mostra disso, fora de lugar. “Comecei a viajar muito, da Austrália para outros lugares. Nesse tempo, fui muito para a Índia, não por razões espirituais, mesmo (risos). Meditação não é a minha praia. Em 1972, fui para o Afeganistão, e esse foi o país mais formidável, geograficamente, que conheci. É absolutamente maravilhoso”. Nessa época, também foi ao Irã, pois admite um imenso interesse pelas artes e arquitetura e queria conhecer vertentes islâmicas. Depois de idas e vindas tendo como base a Austrália, Inna saiu do país e morou em cidades como Londres e Santiago, “perto das montanhas, pois paisagens são muito importantes para mim”. Mas foi em Nova York que encontrou um lugar de onde não queria sair. Ela e o marido foram à cidade por seis meses, a trabalho. Ficaram por 15 anos. “Talvez por Nova York ser tão judaica eu sentia um ambiente muito familiar. Eu me identifico muito com a cultura judaica, mas não com os religiosos judeus. Ou com qualquer tipo de religião”. Inna rodou o mundo como uma negociante de artes, mas foi no Brasil que descobriu qualidades de pintora e a capacidade de transmitir sentimentos nas telas. “Durante toda minha vida, nunca pensei em pintar. Eu tinha um primo e era ele que deveria pintar na família. Essa demarcação era muito clara. Ele era um pintor maravilhoso. Certa vez, já aqui no Brasil, estava no Pantanal. Havia uma mulher maravilhosa, uma pintora. Sentamos e conversamos. Ela disse: ‘Acho que você pode pintar. Venha ao meu estúdio e eu te ensino. Eu vou fazer florescer essa habilidade que eu acredito que você tem’ ” . A habilidade ganhou corpo e o primeiro quadro de sua autoria foi “Carandiru” , uma imagem forte e significativa, um corredor embaçado, escuro, obscuro, com as celas fechadas e o chão um misto de sujeira e sangue. Ao fundo, o fim do corredor e uma luz. A artista já expôs suas obras em Paris - como representante brasileira do “Ano do Brasil na França”, em 2005 – e em São Paulo, em 2006. Agora, ruma a Buenos Aires para a exposição “Escapes”. Olhando os quadros espalhados por paredes e nos cantos de seu ateliê, digo a Inna que ela está sempre procurando uma saída, que ela tem a necessidade de saber que terá um meio de escapar. Ela ri. Inna explica que isso ocorre por estar impregnada também pela marca da guerra. “Eu estou sempre procurando saber que posso sair, posso escapar. Tenho certeza que essa é a marca da guerra. Coisas que tenham a ver com ir embora. Quando a guerra do Iraque começou, pintei várias imagens tendo ela como referência”. Na parede oposta a “Carandiru” , há um quadro chamado “Guantánamo” . Fiz questão de perguntar-lhe o que ela enxerga ali: “Lembre que os prisioneiros de Guantánamo sempre usam laranja. Para mim, isso representa barras, ou então pessoas neste inferno vermelho”. Ela se volta para “Carandiru”: “para mim é a mesma prisão, só que aqui há alguma esperança, há uma escapatória”. Olha novamente para “Guantánamo” : “Aqui não há escapatória”. Digo a ela, então, que aos brasileiros resta uma saída, aos presos de Guantánamo, não. Ela acena com a cabeça. Um outro problema que parece não ter saída tem relação com o que Inna chama de sua identidade judaica, aquela que a fez querer ficar em Nova York. Um túnel com uma luz, como “Carandiru” , parece não ser exatamente um quadro perfeito para a atual situação do conflito palestino-israelense. A artista vê como muito importante sua identidade judaica. É algo que para ela traz um sentimento de conforto. Foi isso que a fez sentir-se em casa quando esteve em Nova York. Mas lidar com esse sentimento familiar que lhe foi deixado pelos pais não a livra das complexidades que ele carrega. Em primeiro, porque Inna confessa ser atéia, ou seja, não sente conexão com o aspecto religioso do judaísmo. “Quando disse uma vez a minha empregada que eu não podia acreditar em nada, ela ficou assustada por mim”. Digo a Inna que estava em um país católico, e que a descrença não é algo comum. “Sim. Mas, por exemplo, ela, então, me disse: ‘Inna, algo terrível aconteceu e eu preciso que você ascenda uma vela para mim e reze’. Eu faria com o maior prazer, faria o gesto por ela, se este a fizesse sentir-se melhor. Uma vez, um amigo judeu disse a mim: ‘Então, o que você faz quando está triste ou feliz?’. Bom, se não posso rezar por um, não rezo pelo outro. Mas sinto uma identidade com judeus, em um certo nível. No entanto, não gosto de limites ou de grupos fechados”. Inna diz preferir a multiculturalidade. E como o Estado de Israel se liga a essa identidade judaica da qual se sente parte? “Com muita confusão. Poderia dizer algumas coisas boas a respeito de Israel, mas nos últimos anos vejo muitas injustiças sendo cometidas. Hoje em dia, se você critica Israel, você é um judeu ‘que se auto-odeia’(self-hating jew) . Isso é ridículo. Há o bom e o mau, mas ultimamente há muito pouco de bom”.