Décadas sob ocupação
Salah Habboub e Eyal Sagie vieram ao Brasil para, através de suas histórias, mostrar uma face pouco conhecida do conflito entre Israel e Palestina. Em evento realizado pela FFIPP (Faculty for Israeli Palestinian Peace) e pelo Instituto da Cultura Árabe, falaram à comunidade acadêmica para incentivar movimentos globais que ajudem a dar fim à ocupação na região. Entre os dias 24 e 26 de outubro, deram palestras e participaram de debates na PUC-SP, USP e Unicamp. Salah é palestino de Ramallah, bacharel em Ciências Sociais e funcionário do departamento de prisioneiros da Autoridade Palestina (AP), “provavelmente o único no mundo”, faz questão de ressaltar. Sobre o assunto, ele tem experiência. O palestino ficou preso durante sete anos e dois meses, de 17 de outubro de 1990 até o final de 1998. Por causa da prisão, o curso de Ciências Sociais que poderia ter terminado em quatro anos, fez em treze. Na época, ele militava no grupo político Fatah. “A central na qual fui preso fica a cinco minutos da minha casa, mas rodaram comigo por duas horas para me fazer acreditar que eu estava longe”. Foi interrogado por 103 dias, tempo durante o qual foi torturado. Pediam para ele confessar um crime que não havia cometido. “Diziam que se eu confessasse, parariam com as torturas e me levariam para a prisão, como se a prisão fosse um palácio”. Já Eyal é israelense de Tel Aviv. Quando iniciou sua fala, logo esclareceu que sua história não teria os horrores por quais Salah passou, mas diz que também sofreu com a opressão de não poder expressar uma opinião rara dentro de Israel, a de total oposição à ocupação. Se Salah não tem vida, Eyal não tem voz. “Salah e eu pertencemos à mesma comunidade, pelo menos à mesma comunidade oprimida, ainda que de maneiras diferentes”. O israelense decidiu aos 15 anos que não iria servir o exército. “Vi nos territórios ocupados as diferentes cores de identidade, os diferentes níveis de cidadania”. NOS TERRITÓRIOS, OCUPAÇÃO MANTIDA PELA VIOLÊNCIA “Passei sete anos e dois meses em uma prisão só por ser palestino. Não há como levar isso a julgamento”, desabafa Salah em meio ao seu depoimento. Em 1990 ele foi preso baseado na Lei Tamir, uma lei de Israel que permite que alguém (leia-se ‘alguém palestino’) seja preso simplesmente por ser verbalmente acusado por um crime. “Quando me prenderam, me tiraram de casa em questão de segundos. Minha família não sabia o local e o motivo da minha prisão”, conta. Salah interrompe o relato por um momento e afirma que representa a realidade e a história de todos os palestinos. Continua: “Me colocaram em um refrigerador, um saco com um cheiro horrível, as mãos e os pés acorrentados, com uma goteira caindo sobre mim. Nesse primeiro momento, achei que tinha ficado dias preso. Foram apenas duas horas. Depois, rasgaram minha roupa e deixaram apenas o colarinho, para que pudessem sacudir minha cabeça. Quando começava a sangrar, eles esperavam 15 minutos para secar e depois voltavam a sacudir”. Quando ele foi preso, tinha completado apenas metade do bacharelado. Para continuar os estudos, ele e outros faziam greve de fome. “Fazíamos greve de fome de até 18 dias para exigir direitos de saúde e alimentação. Para quem estudava, queríamos que continuasse estudando”. Salah pôde continuar seu curso, não em Birzeit, Universidade na Cisjordânia que freqüentava, mas na Universidade Aberta de Israel. Para isso, teve que aprender hebraico. Salah escolheu contar sua prisão não para chocar as pessoas, mas porque ela representa a realidade de muitos palestinos. “Não quero falar de princípios políticos porque eles transformam os criminosos em vítima e a vítima em criminoso. Quero falar em fatos reais”. Outra lei permite que Israel prenda crianças palestinas. Em Israel, alguém se torna maior com 18 anos. Para os palestinos a lei que vale define a maioridade em 16. Também há mulheres grávidas nas prisões israelenses. “Eles ameaçam as crianças de prender seus pais ou de demolir suas casas. Desde 1948, mesmo com todas essas prisões, com nossas terras roubadas e com os muros que são construídos, eles conseguem transformar a nossa realidade de vítimas na de criminosos”. EM ISRAEL, OCUPAÇÃO MANTIDA PELO SILÊNCIO Nas palestras, Eyal gostava de contar uma história que acontecera um dia antes de deixar Israel para vir ao Brasil. Um dia antes de partir, foi o dia de Yom Kippur, data que comemora um momento de reflexão e de pedido de perdão por parte dos judeus e, desde 1973, lembra também a data da guerra que Israel travou contra Egito e Síria. “Um dia antes da partida, muitas pessoas foram até a casa de meus avós, onde moro, porque era dia de Yom Kippur. Muitas pessoas ali tinham perdido parentes na guerra. Um tio meu morreu no canal de Suez. Então, um amigo desse meu tio, que havia servido no exército, e eu começamos a conversar sobre política. Só que, de repente, o que era uma conversa virou um interrogatório. A todas as perguntas dele, eu tinha que dar uma resposta completa e sólida. Mas a minhas perguntas ele respondia com um simples ‘não sei’. Nas regras dessa conversa era normal ele dizer ‘eu não sei’. Isso porque essa á a opinião majoritária da população, que defende a ocupação. A posição dele não precisa de defesa”. O objetivo da história de Eyal era mostrar como a esquerda em Israel, que se opõe ferrenhamente à ocupação, está também oprimida. Esses ativistas são uma minoria que quer viver com os palestinos, mas são silenciados por uma opinião hegemônica criada pela educação em Israel que não olha para os palestinos como relevantes. E grande parte dessa opinião é construída por uma sociedade extremamente militarizada. Em Israel, servir o exército é obrigatório, três anos para os homens e dois para as mulheres. “Em qualquer conversa sobre política, a primeira coisa que perguntam é se a pessoa serviu o exército”. Eyal se recusou a servir como protesto contra a ocupação. Para escapar da prisão de três anos, destinada aos que recusam, o israelense teve que convencer que não seria útil ao exército. “Para essas pessoas, eu não sabia nada sobre a ocupação. Ainda que eu tivesse passado mais tempo nos postos de controle, mais tempo nas cidades palestinas do que qualquer soldado”. Desde os 15 anos, ele trabalha com organizações de ativistas que lutam contra a ocupação e ajudam palestinos. “A ocupação, para mim, é um nacionalismo que saiu do controle”, afirma o estudante. Por um lado, esse nacionalismo saiu de controle já no começo do século passado, com as organizações sionistas, e depois em 1948, com a formação do Estado de Israel. “Eles distorceram a história, a geografia e criaram uma Palestina vazia. Quando se provou que não estava vazia, a tornaram vazia”. No entanto, Eyal prefere não separar as populações israelense e palestina. Em primeiro, porque essa oposição é uma das ilusões que permitem que a ocupação continue (veja mais na entrevista que Eyal concedeu ao ICArabe). Em segundo, porque Israel também é afetado pela ocupação. “Nós somos privados de uma lei clara e de qualidades democráticas. O desenvolvimento econômico fica prejudicado e grande parte do dinheiro que poderia ser destinado à saúde, educação, cultura e infra-estrutura o Estado põe nessa máquina destrutiva chamada ocupação”. UM ESTADO? Apesar de acreditarem na possibilidade da coexistência entre as duas sociedades, e acreditarem ser essa a melhor solução, nem Salah nem Eyal acham que seja viável isso acontecer em um curto prazo. Para Salah, “para haver a convivência pacífica, os palestinos devem ter respeitado seus direitos, o que começaria com o fim da construção e a derrubada do muro na Cisjordânia”. Eyal aponta um outro problema. “Na atual correlação de poder entre os palestinos e israelenses, juntar as sociedades seria temeroso, pois os palestinos se tornariam mão-de-obra explorada, quase escravos de segunda classe”.