"Este livro foi uma tentativa de dar voz a palestinos sem voz"
Repórter do ICArabe conversa com Susan Abulhawa sobre o seu mais recente livro, "A Cicatriz de David", lançado agora em 2009 pela Editora Record.Abaixo segue uma breve conversa com Susan Abulhawa, autora de “A Cicatriz de David”. A entrevista que deu ao ICArabe por email girou em torno da narrativa que se junta a tantas outras dentro da cultura palestina. São histórias que se repetem em círculos, incessantemente, pois a realidade tampouco muda. Há uma estrutura de discurso que prende os palestinos vinda de uma necessidade de revolta e de sobrevivência. Se ninguém os escuta, então voltam a contar mais uma vez sua situação de oprimido até que os entendam. Assim podemos perceber o esforço literário de Abulhawa, que agora sai na sua versão brasileira pela Editora Record. A palestina que vive no exílio procurou colocar em 448 páginas uma pequena passagem da história palestina, cerca de seis décadas, as três gerações que viveram, e ainda vivem, sob a ocupação israelense. E nesta linha traçada por Abulhawa, passamos grande parte da obra na cabeça de Amal, uma mulher nascida no caminhar do que os palestinos chamam de nakba. “A Cicatriz de David”, apesar do nome, é uma história sobre mulheres palestinas. Amal, a personagem principal, nos conta sua vida, seu exílio, sua condição de desterrada. Revela angústia de sua sexualidade, sem os exageros a que estamos acostumados por essas bandas, mas sem nos furtar de imaginar o prazer, o sentimento. Lida com o freamento que a sociedade em geral, não apenas a árabe, impõe ao livre sentir. “Nossa sexualidade é um tema central de leis e regras dentro da sociedade e da religião, não apenas na sociedade árabe. Todas as sociedades oprimem a mulher em diferentes medidas”. Mas o olhar da mulher em “Cicatriz...” não poderia simplesmente se limitar a isso e lida com o peso da ocupação israelense que as palestinas carregam. Na verdade, não deixa de relacionar as duas. E elas carregam em dobro, perdem pais, irmãos, maridos e filhos. “A mulher palestina lida com a dureza física da ocupação, a mesma que os homens lidam, mas carregam o fardo do senso de impotência de seus maridos e irmãos. Humilhados e emasculados, descarregam a raiva nas mulheres, e elas suportam. São geralmente elas as que ganham o pão da família, pois os homens não podem mover-se para trabalhar. Criam os filhos e cuidam da casa. E lutam. Perseveram e agarram-se a suas casas. Claro que teria que honrá-las neste livro”. O viés de Susan, ainda que tenha vivido grande parte de sua vida no exílio - “há uma especial crise de identidade que vem ao viver-se no exílio. Você nunca realmente pertence a qualquer lugar e se acha sempre a ter que escrever livros para desvendá-la” - é uma das qualidades do livro. Ainda mais que os pares aos quais Abulhawa se aproxima são todos homens, e correntemente citados no livro. Os conterrâneos Edward Said e Mahmud Darwish, além do jornalista Robert Fisk, responsável pelo contundente “Pobre Nação”. “Não tenho a presunção de estar par a par com nomes como Edward Said ou Mahmud Darwish – Allah Yirhamhom (que descanse em paz) – mas certamente estou do lado deles, da humanidade, justiça, arte, beleza e da luta pelo lar e a herança”. Pergunto a ela se de alguma forma a obra de um outro escritor, o libanês Elias Khoury, lhe trouxe inspiração ou angústias literárias. Uma breve resposta:“Elias Khoury é um escritor maravilhoso e fez grandes contribuições à sociedade palestina”. “A cicatriz...” não segue o caminho que Khoury faz em “Porta do Sol”, onde o libanês nos joga num tufão de dúvidas, de questões existenciais, de contradições. Afinal, “a Palestina não são as laranjas”, disse ele pela boca do personagem Yunis. E aqui segue um trecho da bronca que dá no personagem Khalil, que pendurou as laranjas da Palestina na parede: Que vergonha ... essas crendices só cabem às velhas; em vez de pendurar sua pátria na parede, derrube a parede e vá. Devemos comer todas as laranjas do mundo sem temer; nossa pátria não são as laranjas, somos nós*. Susan tem uma outra característica. O esforço da autora acaba por seguir destinos de histórias incessantemente ouvidas, contadas da mesma forma inúmeras vezes. É a tal necessidade de sobrevivência e de revolta. Mas Amal, a personagem mais cativante e turbulenta do livro, nos devolve ao curso de uma leitura intrigante expondo as angústias de ser palestina. Ela nos leva pela mão a todas as formas de violência que uma palestina pode sofrer, vindo desde os homens da família ou da ocupação israelense, da violência física dos soldados ao exílio. De um autoimposto apagamento da identidade para que esta não a consuma à recuperação dessa identidade para que a falta dela não a mate por dentro. Aqui, o romance nos aproxima de uma forma pavorosa do que é vivido pelos palestinos nas seis décadas cobertas pela autora. Esperamos pelo tiro. Sentimos a raiva da humilhação. Saímos do país para o exílio sem esperança de solução. Desistimos de ser palestinos. Voltamos, com fúria, a ser palestinos. “Há uma linha no livro, sobre Haj Salem, quando Amal diz que aquela era a história de todos, pois todos temos nossas histórias, e elas são entregues junto com chaves velhas de casas, de uma geração a outra. Este livro foi uma tentativa de dar voz a palestinos sem voz”. A cisão que dá vida à história e título ao livro é o roubo do pequeno Ismael e sua transformação em David, filho “adotivo” de um soldado israelense e uma judia vinda do holocausto, e que não podia ter mais filhos. Mas quem chorava então era Dalia, ainda mãe de Youssef e Amal, e órfã da Palestina. Nas linhas de “Cicatriz...” está representado aquele maio de 1948, um virar de mesa, a partir dali um jogo em que todas as regras levavam ou à derrota ou ao castigo. “É uma história humana. Hoje, nossa existência é percebida como um ato político; mas temos uma longa história, uma rica cultura e lindas tradições. Esta é a história de uma família, existindo e tentando sobreviver através da construção artificial imposta em nossa terra por estrangeiros. É na verdade um velho e trágico script do colonialismo, do imperialismo e de noções de superioridade divina”. Termina-se o livro com aquela sensação de impotência, de vazio, de paralisia. Fecha-se o livro cansado, como sai-se abatido de uma entrevista com um palestino. De 1948, de 1967, de Jerusalém, da Cisjordânia, de Gaza, não importa. Parece que estamos a ler uma biografia, a biografia da esperança palestina. Incessantemente interminável. * em a “Porta do Sol”, de Elias Khoury; Ed Record, 2008(p. 31).