No sexto ano da ocupação, mais um capítulo do drama da destruição arqueológica*
Em seis anos da ocupação no Iraque, cerca de 100 mil iraquianos morreram – números da iniciativa independente Iraq Body Count. Mas se o país continua a ser uma preocupação enorme para seus cidadãos e ativistas de direitos humanos, há aqueles que se inquietam, desde 2003, com o que há sob a terra, riquezas arqueológicas a serem escavadas, mas seguidamente destruídas em muitas regiões do território. Marcelo Rede, Assiriologista e Professor de História Antiga da USP, faz parte de uma geração de estudiosos afetada pelo longo tempo de conflito que aflige o Iraque, um arco de que vai desde 1980, com a Guerra Irã-Iraque, até hoje. Tendo como objeto de seus estudos as civilizações mesopotâmicas, jamais pôde pisar pé entre os rios Tigre e Eufrates. Conversou com o ICArabe dois anos atrás, em fevereiro de 2007. Agora, no sexto ano da ocupação, volta a falar dos estragos que o desencadear do conflito interno causou à herança arqueológica do país. “Lembro de uma conversa com Beatrice André-Sauvigny, curadora chefe de Antiguidades Orientais do Louvre. Pouco tempo após a invasão, foi convidada a fazer um levantamento no Museu de Bagdá. Para passar de uma sala a outra, pisava sobre tabletes, tal era a quantidade de coisas no chão. ‘Nunca pensei que fosse um dia pisar em materiais que tratamos quase de forma sagrada’, ela me disse”. O último dos capítulos do drama dentro do drama – aberto em 2003 com o espetacular saque ao Museu de Bagdá – foi a demissão de Amira Edan do posto de direção do Departamento de Antiguidades e Herança. O problema: uma disputa com a parte administrativa do governo iraquiano que quer a reabertura do Museu de Bagdá. Donnie George Youkhanna, arqueólogo iraquiano, ex-professor da Universidade de Bagdá, ex-diretor do Museu de Bagdá, ocupou o mesmo cargo em 2005 e 2006. Fugiu do país devido à onda sectária que milícias impuseram ao país. Ele vive hoje em Nova York, mas mantém contato com seus colegas e ex-membros de equipe. Não gosta nem um pouco das notícias que lhe chegam aos ouvidos. “O ministro das Antiguidades e Turismo entrou no prédio do Museu com seus guarda-costas segurando Kalashnikovs, em janeiro. Ordenou a reabertura do Museu e Amira foi contra, disse que ainda não havia condições para fazê-lo, o que qualquer arqueólogo diria. Tiraram ela do cargo do Departamento de Antiguidades, mas ela continua na direção do Museu. Não podem fazer as coisas sem ela. O Museu é um lugar público, imagine se 200 crianças de uma escola estiverem ali”, disse o arqueólogo em entrevista por telefone ao ICArabe. Se um ataque acontecer, morrem as crianças e famílias, e vão pelos ares materiais insubstituíveis de 4000 anos. O temor não é infundado. Na quinta e na sexta da semana passada (23 e 24 de abril), 159 pessoas foram mortas por ataques em Bagdá. Além de o governo iraquiano não ter qualquer controle sobre a segurança do país, ainda paira no ar o sentimento de não-legitimidade de uma administração com raízes em uma ocupação estrangeira. E se o poder iraquiano quer eleger o Museu de Bagdá como o símbolo da normalidade social e política, as milícias terão para elas um alvo ideal. Além de a situação não ser segura, tampouco o acervo foi satisfatoriamente recuperado. Dos 15 mil itens roubados no espetáculo de 2003, apenas cerca de seis mil foram recuperados. Youkhanna ficou conhecido como “o homem que salvou o Museu Nacional Iraquiano”. Na época, 2003 a 2005, como Diretor de Museus, foi responsável por políticas dedicadas a salvaguardar o possível da riqueza arqueológica. No entanto, admite: “mesmo que tenhamos recuperado 50% dos objetos, a outra metade significa cerca de 7000”. Para recuperar as antiguidades saqueadas, usou uma lei existente de Anistia, que regulamentava uma recompensa a todos que devolvessem objetos. “Muitas organizações, partidos políticos e mesquitas trabalharam conosco”. Só de objetos não-registrados dos sítios, foram devolvidos 17 mil itens, formando o emaranhado de objetos jogados no chão ao qual se referiu Rede. Muitos desses objetos não foram documentados apropriadamente. O estudioso brasileiro explica que isso se torna um problema enorme para os pesquisadores de História Antiga. “Muita coisa do que se perdeu não era catalogada. Sobretudo objetos ordinários mas que podem ser extremamente importantes para o historiador. Não é o objeto monumental que ganha tratamento diferenciado, mas milhares de tabletes e selos cilíndricos”, diz o brasileiro. A questão da reabertura dos Museus, por agora, está em compasso de espera. Youkhanna também enfrentou o problema dos sítios arqueológicos. Conseguiu a aprovação do governo para uma força policial especial para a arqueologia e o patrulhamento de sítios, entre 2004 e 2005, com cerca de 1400 policiais, quase todos ex-soldados. “Consegui carros para eles do Japão e dos Estados Unidos”. Em 2006, o então diretor começou a ter problemas com a receita de salários. Depois, também cortaram a receita para o combustível dos carros. “A última coisa que ouvi foi que essa força foi desconectada do Departamento de Antiguidades e Herança e foi ligada ao Ministério de Interior. Um dos ex-membros da minha equipe me disse que o trabalho dessa polícia não inclui mais patrulhar os sítios arqueológicos, mas apenas guardar as instituições dentro das cidades, como Museus”. Com os sítios pouco protegidos, o iraquiano teme que saqueadores tenham liberdade para agir como no início de 2003. Um problema similar foi enfrentado em 1995, no momento de profunda pobreza que atingia a população iraquiana efeito do embargo dos Estados Unidos. “O que os encoraja é uma grande porcentagem de pobreza. Não estou os desculpando, mas imagine uma família sem qualquer receita, sem água suficiente para plantar e sem condições de manter gado, e que vive perto de um sítio arqueológico. Chega alguém e lhes diz que, se cavarem, ganharão dólares. É isso que acontece. Muitos intermediários circulam pelo sul pegando antiguidades direto dos saqueadores para então colocá-las na corrente dos contrabandistas, até Europa e Estados Unidos”, explica Youkhanna. O Museu Britânico publicou no segundo semestre de 2008 um relatório com análise dos danos a oito sítios arqueológicos do sul do país (Ur, Eridu, Ubaid, Warka, Larsa, Tell el-‘Oueili, Lagash e Tell al-Lahm) feita em três dias do mês de junho de 2008 (3/4 e 7/8). No relatório, são listados quatro tipos de danos aos sítios: por saques, por atividades militares dos exércitos de Saddam, por atividades militares dos exércitos da coalizão e, por último, o que foi chamado de negligência. Em relação aos saques, o relatório não encontra qualquer evidência recente. Apenas no sítio de Tell al-Lahm sinais recentes de escavação ainda claros podiam denunciar roubos. Mas “nenhuma evidência de saque recente foi encontrada em qualquer dos sítios”, uma conclusão diferente do que esperaria Youkhanna. Quanto a danos causados por posições de defesa, isso ficou mais claro em Tell al-Lahm e em Ubaid, por postos de comandos instalados e por abrigos para veículos, como tanques. “A construção dessas posições de defesa inevitavelmente necessitou da escavação de depósitos arqueológicos não-tocados”. No quesito danos causados por atividades da coalizão, há a citação da presença de unidades em Ur e Tel al-Lahm, “confirmados pelo descarte do embrulho de comida americana”. Mas evidências de danos em si não foram encontradas em Tell al-Lahm, nem qualquer ligação das tropas da ocupação com os possíveis saques realizados ali, apesar de isso “não poder ser descartado”. Em Ur foram encontrados danos, causados pela simples presença e passagem de soldados, que visitam os sítios nas “horas de folga”. O quarto ponto, “negligência”, traz uma conclusão global e de longo prazo. Diz: “é conhecido que, por mais de 25 anos (desde o início da Guerra Irã-Iraque), há um investimento deficitário na herança cultural do Iraque, com o resultado de muitos sítios e monumentos sofrerem hoje de negligência. Este é um processo que se acelerou desde março de 2003. É particularmente perceptível em Ur, onde os prédios reconstruídos nos anos 1960 e 1970 estão em péssimas condições e em urgente necessidade de reparo. Também danos de erosão foram vistos em vários sítios, particularmente Eridu e Tell al-Lahm”. Um dos coordenadores do estudo, curto mas que se considerou satisfatório, foi John Curtis, arqueólogo britânico e keeperI do Departamento de Oriente Médio do Museu Britânico. Ele foi sete vezes ao Iraque desde 2003 para realizar inspeções e calcular danos a sítios arqueológicos. Ele explica que a escolha do local foi logística. Como a equipe de arqueólogos coordenada por Curtis foi apoiada pelo exército britânico, o estudo limitou-se ao sul porque é onde as unidades da RAF (Força Real) estão alocadas. Apesar de não ter encontrado sinais claros de saques recentes, ele os aponta como o principal problema, mas não diminui a influência da “negligência”. “A coisa ficou pior após a 1ª Guerra do Golfo, o tempo de sanções. Houve ainda menos recursos. Temos então um longo período, olhamos para 28 anos em que não houve recursos gastos para proteger a herança cultural”, disse ao ICArabe. O embargo, além de todos os problemas sociais e humanitários que causou ao Iraque, atingiu de forma dura o desenvolvimento da arqueologia. Bloqueou relações com instituições que costumavam trabalhar no país há décadas – “trocar informações em arqueologia é uma das coisas essenciais”, diz Youkhanna -, impediu a chegada de novos livros ao país e também de materiais necessários ao trabalho arqueológico como substâncias químicas e microfilmes. “Tivemos todo um departamento de microfilmagem que ficou paralisado por esse período”, afirma o ex-diretor do Departamento de Antiguidades. Outro problema foi a impossibilidade de saída de iraquianos. “No Iraque pré-guerra (1990), havia uma arqueologia bastante reconhecida. Seus estudiosos participavam de colóquios internacionais”, conta Rede. Por último, as escavações pararam desde que o embargo começou. “Houve durante a Guerra Irã-Iraque, eu mesmo escavei naquele tempo, de 1982 a 1989. Depois de 1990, no entanto, não houve qualquer escavação. Muitos arqueólogos foram para a Síria, mas também para o Irã e para os Estados do Golfo”. Considerando as sete vezes em que esteve no país, Curtis diz que enxerga uma pequena melhora. Em 2005, após uma de suas visitas, deu entrevista ao “World Socialist Website” revoltado com o tratamento que as tropas da coalizão davam ao sítio da Babilônia. Disse então que fazer uma base militar ali “era como estabelecer um campo militar ao redor das Grandes Pirâmides no Egito ou ao redor do monumento Stonehenge, na Grã-Bretanha”. “Vi de fato alguma melhora na última vez em que estive lá. Se eu estava pessimista em 2005, agora estou um otimista cuidadoso”, revela ao ICArabe, marcando a afirmação com seu indefectível sotaque britânico. *Atualizado às 22h12, em 27 de abril