A batalha pelo Saara Ocidental: a questão da descolonização

Sex, 09/11/2012 - 10:58
Em 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais (conhecida como “Declaração sobre Descolonização”), afirmando:
A sujeição de povos à subjugação alienada, à dominação e à exploração constitui uma negação dos direitos humanos fundamentais (…). Todas as pessoas têm direito à autodeterminação (…). As pessoas devem exercer seu direito à independência total de maneira livre e pacífica e a integridade de seu território nacional deve ser respeitada. Passos imediatos devem ser tomados (…) para transferir todos os poderes aos povos (…) sem condições ou reservas, de acordo com seu desejo livremente expresso (…). Qualquer tentativa de romper total ou parcialmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com as propostas e princípios da Carta das Nações Unidas. Todos os Estados devem observar fiel e atentamente as disposições da Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a presente Declaração baseando-se na igualdade, não-interferência nos assuntos internos de todos os Estados e no respeito aos direitos de soberania de todos os povos e a sua integridade territorial.

Resolução da Assembleia Geral 1514 (XV), 14 de dezembro de 1960.
Essa iniciativa levou à descolonização muitos territórios que eram até então controlados por países europeus. Enquanto a Declaração de Descolonização pedia “ações imediatas”, a descolonização ainda está longe de ser uma coisa do passado. O território do Saara Ocidental é palco da última disputa colonial ainda não resolvida na África. O direito à autodeterminação é um princípio frequentemente discutido no âmbito do direito internacional. O conceito de autodeterminação na lei internacional ainda não está claramente definido. Nesse artigo, o termo será usado para caracterizar o direito de um povo de determinar seu próprio governo e de estar livre da imposição de um regime por parte de um Estado alheio. O direito à autodeterminação é um conceito legal consolidado na Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em vários tratados internacionais como a Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas criou um mandato de manutenção da paz para o Saara Ocidental em 1981. A Missão Para o Referendo no Saara Ocidental (Minurso) foi estabelecida com o objetivo de “monitorar o cessar-fogo, facilitar a troca de prisioneiros de guerra, auxiliar na repatriação de refugiados, identificar e registrar os eleitores aptos a votar e, eventualmente, organizar e garantir um referendo justo e livre”. Esperava-se que a Minurso começasse suas atividades com o estabelecimento do cessar-fogo e as encerrasse com a publicação dos resultados do referendo. No dia 24 de abril de 2012, o Conselho de Segurança votou com unanimidade pela renovação do mandato da Minurso (Resolução 2044). Trinta anos depois do mandato inicial, o referendo para a determinação da soberania do Saara Ocidental ainda não foi realizado. Isso levanta uma série de questões, incluindo o papel desempenhado pela ONU e pela comunidade internacional na descolonização e na garantia de um futuro para o Saara Ocidental.

A terra e o povo

Abarcando uma área de quase nove milhões de quilômetros quadrados e cruzando quase a totalidade do norte da África, o Saara é o maior deserto tropical e climático do mundo. Ele hospeda o Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, Mauritânia, Mali, Níger, Chade, Sudão, Sudão do Sul e o disputado Saara Ocidental – um território pequeno banhado pelo mar no noroeste do continente que faz fronteira com o Marrocos, a Argélia e a Mauritânia.

Aproximadamente 522 mil pessoas vivem nos 266 mil quilômetros quadrados dessa estreita porção de terra. A disputa pela soberania dos saarauis persiste desde a retirada da Espanha, antigo poder colonial, em 1974.

A população original do Saara Ocidental, os saarauis – literalmente, “as pessoas do deserto”, em árabe – são nômades por natureza. Antes da colonização espanhola, os saarauis viajaram a partir das regiões centrais da Mauritânia até o Sul do Marrocos e o oeste da Argélia. Etnicamente, os saarauis descendem de berberes, árabes e africanos negros. Eles falam o hassanya, um dialeto árabe, e praticam o islã sunita. Mesmo que a afiliação tribal já não seja tão importante quanto era no passado, é importante ressaltar que os saarauis vêm de 22 tribos diferentes. Muitos deles são mais sedentários que seus ancestrais. Quando colonizou o Saara Ocidental, a Espanha estabeleceu escolas e um número inexpressivo de residências perto das minas para encorajar os saarauis a se assentarem e trabalharem na mineração. Esse foi o começo da construção da identidade nacional saaraui, uma identidade que logo teve de se desenvolver sob o jugo marroquino.

O território do Saara Ocidental é predominantemente plano, baixo e desértico com pequenas montanhas rochosas no sul e no nordeste. O clima é quente e seco, as fontes de água são esparsas e menos de 1% da terra é arável. Por conta disso, a pesca é a principal fonte de indústria e também de alimento. O fósforo e o minério de ferro são os recursos naturais mais importantes do Saara Ocidental. O Marrocos controla toda a costa e assinou um acordo com a União Europeia que permite a pesca nas águas do território.

A disputa pelo Saara Ocidental

O Saara Ocidental é um território não-autogovernado sob controle do Marrocos. Os saarauis são representados pela Frente Popular pela Libertação de Saquía el Hamra e Rio do Ouro (Frente Polisario). A Frente Polisario declarou o Estado independente da República Árabe Saaraui Democrática, a RASD, em 1976. A RASD é reconhecida por alguns países e pela União Africana – anteriormente conhecida como Organização da Unidade Africana. Esse reconhecimento levou o Marrocos a se retirar da OUA em 1984.

O Marrocos reivindica a soberania sobre o Saara Ocidental desde os tempos de colonização espanhola. Após a adoção da Declaração de Descolonização pela Assembleia Geral da ONU, a Espanha tentou realizar um referendo de autodeterminação em 1974. Antes que isso fosse possível, o Marrocos e a Mauritânia persuadiram a Assembleia Geral da ONU a solicitar uma opinião da Corte Internacional de Justiça sobre sua alegação de soberania. A CIJ sustentou que qualquer laço que os dois países mantivessem com o Saara Ocidental não deveriam afetar a descolonização do território.

Apesar da opinião da CIJ, o Rei Hassan II do Marrocos anunciou que a Corte apoiava as reivindicações marroquinas e, quando a Espanha abriu mão da administração, tomou o controle do Saara Ocidental. O Marrocos enviou 350 mil civis para a região – um movimento conhecido como Marcha Verde – e garantiu o controle sobre dois terços do território (a porção norte). A Mauritânia, ao mesmo tempo, ocupou a porção restante. Pouco depois, a Frente Polisario deu início à guerra de guerrilha contra ambos, Marrocos e Mauritânia. Bombardeios sobre cidades saarauis por parte do exército marroquino forçaram o deslocamento de dezenas de milhares de refugiados para a Argélia. A Frente Polisario foi bem sucedida em expulsar a Mauritânia do território – as partes logo firmaram um acordo, em 05 de agosto de 1979, no qual a Mauritânia renunciou a suas reivindicações.
Depois da Cúpula da OAU realizada em Nairóbi em 1981, uma resolução referente à implementação de uma solução para o conflito foi estabelecida em conjunto com a ONU. Um cessar-fogo seria aplicado com o apoio de uma força conjunta fornecida pelas duas organizações. Em 1991, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a resolução 690 estabelecendo a Missão da ONU para o Referendo no Saara Ocidental, a Minurso, com o objetivo de monitorar o cessar-fogo e realizar o pleito. A ideia do referendo era determinar o futuro do Saara Ocidental como um país independente ou como parte permanente do Marrocos.

A missão da Minurso nunca foi totalmente cumprida. Desde o estabelecimento da operação, o referendo nunca foi realizado. O maior impedimento foi a questão de quem era apto a votar. Entre maio de 1993 e maio de 1996, um comitê de identificação da Minurso processou potenciais eleitores. Sua elegibilidade estava baseada no censo de 1974 conduzido pela Espanha antes de ceder o Saara Ocidental ao Marrocos e antes da Marcha Verde. O rei Hassan II do Marrocos submeteu 120 mil nomes de votantes que não estavam incluídos no censo de 1974. Antes de completar o processo de identificação, a ONU suspendeu o comitê e retirou a maior parte de seu pessoal civil.

Em uma tentativa de alcançar um acordo, o enviado especial da ONU para o conflito, o diplomata James Baker, propôs um Acordo de Trabalho em 2001. Essa proposta daria autonomia aos saarauis sob a soberania marroquina durante um período de quatro anos de transição, seguido por um referendo. Essa proposta foi rejeitada pela Frente Polisario e Baker propôs uma nova resolução na qual o Saara Ocidental seria uma semi-autônoma dentro do Marrocos durante o período de transição. Essa ideia foi rejeitada pelo Marrocos.

As negociações entre o Marrocos e a Frente Polisario estão ainda em andamento mas sem resultados concretos. Enquanto a OAU e outros Estados reconhecem a RASD como Estado independente, o Marrocos insiste que a Frente Polisario não é um interlocutor legítimo para as conversas. Depois de muitas tentativas mal sucedidas, Christopher Ross, enviado pessoal do secretário-geral da ONU para o conflito, sugeriu encontros preparatórios informais em 2009 antes de realizar cinco rodadas de negociações.

Seguindo adiante

A longa luta do povo saaraui pela independência levanta uma série de questões que requerem atenção. Enquanto o Marrocos governa o território, os saarauis estão sendo impedidos de exercer seu direito à autodeterminação– e esse é um princípio estabelecido pelo direito internacional, assim como o direito de usufruir de seus recursos naturais. O futuro do território é incerto, com as negociações recebendo pouco impulso e com a falta de envolvimento da comunidade internacional e da ONU.

(Publicado originalmente no site ttp://saaraocidentalbrasil.wordpress.com)


Saarauis no Brasil

(do ICArabe)

Os líderes saarauis Karim Lagdaf e Chaba Sini estiveram no Brasil em abril deste ano e relataram sua luta para pressionar as instituições internacionais e os governos a colocarem em prática as sucessivas resoluções da ONU (Organização das Nações Unidas) que garantem seu direito à autodeterminação.

Desde 1976, quando a Frente Polisário proclamou a independência da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), no Saara Ocidental, na região próxima aos países do Norte da África que protagonizariam a chamada Primavera Árabe, o povo saaraui vem lutando para tornar-se independente de fato e de direito. Livres da colonização espanhola, porém, sob jugo do Marrocos e de sua sede de anexar a região Ocidental do Saara, o povo saaraui vem sendo massacrado e dividido, vítima do último conflito colonial do continente. Os saarauis estão separados por um muro de mais de 2 mil quilômetros. Quem ficou do lado ocidental teve de aprender a lidar com a ocupação do Marrocos; quem foi para a zona oriental teve de aprender a sobreviver à base de ajuda humanitária em uma das regiões mais inóspitas do deserto do Saara. Ao longo dessas décadas, múltiplas resoluções das Nações Unidas e da comunidade internacional que reconhecem o direito à autodeterminação do povo saaraui vêm sendo vergonhosamente desrespeitadas. Mais de 80 países, como África do Sul, Cuba e Argélia, reconhecem a RASD, mas somente no papel. O Brasil ainda não oficializou o reconhecimento, mas os saarauis acreditam que o País pode exercer papel de destaque nessa agenda. Um grande passo já foi dado, com o envio, pelo Brasil, de um lote de ajuda humanitária.
 
Representantes do governo saaraui, Karim Lagdaf  e Hamdi Bouiha integraram a delegação ao Brasil, juntamente com Chaba Sini, que representou a União das Mulheres Saarauis. “Esperamos há mais de 20 anos que a ONU aplique as resoluções assumidas. Em 1991, o governo do Marrocos e a Frente Polisário chegaram a um acordo para que o Marrocos retirasse suas tropas e pudéssemos realizar um plebiscito. Assim o povo poderia decidir pela independência ou pela anexação ao Marrocos. Mas isso nunca se realizou. Estamos indignados com essa situação e acreditamos que o Brasil, por sua importância no cenário internacional, pode contribuir muito com a nossa causa”, afirmou Karim Lagdaf na ocasião.
 
O grupo buscou, em sua visita ao Brasil, articular apoios e divulgar o conflito, já que sua exposição na grande mídia sempre foi limitada. Por entender que seus esforços são fundamentais para mudar a posição de neutralidade assumida pelo País nos foros internacionais, os representantes saarauis participaram de encontros com entidades da sociedade civil, esclarecendo dúvidas sobre o conflito, sobre a posição da Frente Polisário nas negociações com o Marrocos, sobre a situação dos direitos humanos nos territórios ocupados e nos acampamentos de refugiados, a realidade da mulher nesse cenário e o papel da comunidade internacional e da sociedade civil na resolução desse conflito. “O Marrocos nos nega nossa dignidade. Não podemos usufruir de nossas próprias riquezas. Vivemos sob o preconceito e o constante desrespeito aos direitos humanos”, relatou Karim.
 
Vivendo da ajuda humanitária, os saarauis veem suas crianças impedidas de aprender nas escolas sobre sua cultura e suas tradições, suas mulheres proibidas de usarem seus trajes tradicionais e presos políticos encarcerados pelas autoridades marroquinas sem julgamento, inclusive crianças e idosos. Por isso, lançam mão de todos os recursos pacíficos para sensibilizar a comunidade internacional e a ONU a fazer valer as resoluções, mas, como explica Karim, a estratégia tem um prazo de validade. “Não podemos esperar por muito mais tempo e, em um certo momento, teremos que utilizar todas as vias para ocupação, já que são mais de 20 anos de espera para que a ONU aplique alguma resolução. Temos jovens que cresceram nesses acampamentos de refugiados e não sabem o que é uma vida livre. Por quanto tempo eles concordarão em sobreviver nessa situação?”
 
Além da luta organizada desse povo, a crise mundial pode ter um papel importante na derrocada da estratégia de dominação marroquina, como ressaltou Karim. Os interesses do Marrocos pela riqueza mineral das terras saarauis (uma das maiores reservas de fosfato do mundo, além de petróleo) obrigam o governo monárquico marroquino a gastar mais de U$ 2 milhões diários para manter o domínio no Saara, cerca de 60% de sua economia. “A economia do Marrocos é baseada no turismo. Com a crise mundial, os europeus, principais turistas no país, deixaram de viajar. Acreditamos que eles não poderão bancar essa política por muito tempo.”
Karim, que vê com otimismo as revoluções ocorridas na Primavera Árabe, vê na luta saaraui a inspiração para os movimentos que vêm concentrando as atenções do mundo. Antes mesmo do estopim na Tunísia, os saarauis estavam organizados e protestando por sua independência.
 
Mulheres: força maior do movimento

 “Sem as mulheres, nossa luta não teria existido. Elas têm papel fundamental social, econômica e politicamente”, afirmou Karim, ao lado de Chaba Sini, que integrou a delegação que participou do 15º Congresso da Federação Democrática Internacional das Mulheres em Brasília em abril deste ano.

Chaba explicou que os saarauis vêm de uma tradição nômade, na qual todos têm que contribuir na divisão de tarefas. Daí a igualdade de gêneros ser respeitada, todos se ajudam. “Nós mulheres temos um papel fundamental nessa luta e o nosso povo reconhece isso. Muitos jovens que conseguiram ingressar na faculdade são mulheres, o que fez elevar o nível educacional em várias comunidades.”
 
As líderes saarauis também assumiram o papel de “embaixadoras” da causa junto a organismos internacionais, através da criação e do fortalecimento dos vínculos com instituições de todo o mundo. Entre as ativistas há professoras, doutoras e ministras, entre outras profissões.
 
Ainda lutando por sua independência, os saarauis vão ensinando ao mundo como promover os valores de respeito e igualdade, tão diferentes do machismo e do preconceito que países plenamente independentes muitas vezes ajudam a propagar, atrofiando o próprio significado de sua independência.