Entre o racismo e a memória: a luta por um espaço compartilhado dentro de Israel
Uma democracia que, oficialmente, diz tratar todos seus cidadãos de maneira igual. Em seu cerne, na sua declaração de independência, de 15 de maio de 1948, Israel afirma que a partir dali, naquele Estado, todos teriam direitos iguais. Mas o caráter judeu que lhe dava vida atrelava a esta sociedade uma guerra social sem fim, ainda mais quando continha em si uma grande comunidade injustiçada que nunca cessou de lutar por seus direitos nacionais e culturais. Falo dos palestinos que permaneceram após o maio de 48, data que chamam de catástrofe, pois esta lhes colocou em um redemoinho de expulsões, desapropriações, morte (Deir Yassin vem à mente) e ocupação.
Viajei cinco meses por parte deste território que em geral conhecemos por Israel e Territórios Ocupados da Palestina. Os palestinos de Gaza e Cisjordânia continuam, desde 1967, ocupados. Mas os palestinos e seus descendentes que ficaram em Israel, que hoje compõem 20% da população total do país, estão sozinhos. Foi essa a primeira impressão que tive ao conversar com eles em Tel Aviv-Yafo (sua Jaffa), Haifa, Acre e Nazareth. Eles não podem mais fazer parte do Estado palestino, tornado inviável pelos Acordos de Oslo, pelo qual muitos lutaram. O controle israelense dentro da Cisjordânia nunca foi tão efetivo. E Gaza sofre com o fechamento de suas fronteiras, o cerco realizado por Israel e seu parceiro Egito.
Os palestinos de Israel hoje lutam por exercer sua “palestinidade” sem sofrer perseguição. E ainda que Israel espalhe aos quatro cantos seu caráter democrático, parece preferir ocultar o que faz para defender seu caráter judeu. O grupo de rap palestino (ou árabe-israelenses, como os define o governo de Israel) DAM diz em uma de suas letras, tirada de vídeo no YouTube, “o máximo de terras para o máximo de judeus; o mínimo de terras para o mínimo de árabes”. Poderíamos estar falando dos territórios ocupados, já que quase toda cidade palestina na Cisjordânia olha hoje para um assentamento israelense, mas estamos do lado de lá, onde vemos as belas praias e o litoral israelense.
É possível fazer vista grossa à guerra que, de qualquer forma, também se incrusta no cotidiano social. A não ser que tenha traços árabes, então o passante terá toda a experiência do conflito, será revistado e questionado no aeroporto, em rodoviárias ou mesmo em um simples passeio pela turística cidade velha de Jerusalém. Sim, ela ainda está ocupada. Mas se um turista não ler resoluções da ONU ou ignorar os palestinos do lado Leste – adoram conversar em seus aconchegantes cafés - então verá Jerusalém como mais uma cidade israelense.
A cisão provocada pelo embate entre democracia e judaísmo está na base fundamental deste país e parece hoje ser insuperável, ainda mais quando faz parte do cerne político do Estado e do caráter identitário de Israel.
Na última semana, o jornal Haaretz informou que o rabino-chefe de Safed – norte de Israel -, Shmuel Eliyahu, e outros “proeminentes rabinos instalaram um chamado em um ‘ conferência de emergência’ financiada pelo Estado intitulada “Guerra Silenciosa: Combatendo a Assimilação na Cidade Sagrada de Safed”. Ali, informa o diário, Eliyahu e outros 17 rabinos pediram a judeus que não aluguem casas a não-judeus. A Galileia, norte de Israel, tem uma das maiores concentrações de população árabe. Chefes políticos palestinos e associações da esquerda israelense pediram ao Procurador Geral que abrisse investigação criminal contra os rabinos.
De qualquer forma, acusar qualquer um de racismo em Israel torna-se difícil quando seu ministro de Assuntos Exteriores, Avigdor Lieberman, o líder do partido Yisrael Beitenu, braço direito na atual coalizão encabeçada pelo Likud de Binyamin Netanyahu, defende publicamente políticas racistas. Nunca antes um chanceler israelense havia ido ao púlpito da ONU e defendido abertamente transferência populacional como parte da solução do conflito árabe-israelense. Nada disso surpreende a israelenses que acompanharam de perto sua campanha para as eleições de 2009.
Esse crescimento de facções ligadas à defesa ortodoxa do sionismo tornará difícil a vida de movimentos palestinos ou da esquerda israelense. Tive a chance de entrevistar um desses ativistas para o documentário “Sobre futebol e barreiras –a Copa do Mundo 2010 vista em Israel/Palestina”, um judeu nascido na Argentina e que hoje dedica-se a criar a consciência entre os judeus-israelenses sobre a catástrofe palestina. Quer fazer emendas, expurgar o que ele considera o crime inicial da formação deste Estado. Ele dirige uma organização chamada Zochrot (Relembrar, em hebraico) e leva adiante projetos de recuperação de memória de palestinos vivos em 48, de reconstrução de vilas destruídas e de projetos para o retorno de refugiados.
Em uma tarde em Tel Aviv, ele detalha um desses projetos, a reconstrução da vila de Miske: “Uma coisa que passou pela minha cabeça é que realmente temos que planejar e criar um novo espaço compartilhado, e não apenas um pensamento raso de como eles podem retornar a suas vilas. Espero que voltem e possam reconstruir suas vilas. Isso eles farão, não é meu trabalho. O que posso fazer, no entanto, e isso é importante eu fazer como israelense, é como posso recriar isto como um espaço compartilhado, com israelenses vivendo aqui, com palestinos vivendo aqui e com os refugiados e os descendentes que desejarem viver aqui. Pensamos esse espaço compartilhado no exemplo de Miske. Essa antiga vila hoje está cercada por três ou quatro assentamentos ou vilas judaicas. Um é um kibbutz outro é uma moshav, todos têm uma cerca e um grande portão de entrada. De certa forma, é uma área fechada. Pensei que uma das primeiras coisas que quero fazer é derrubar todas essas cercas. Se você vai a um espaço compartilhado e cria um kibbutz com cercas, mostra exatamente o que você está fazendo, você é uma colônia, cria locais de assentamentos, que estão armados. Todos têm armas lá dentro, são fechados, não estão compartilhando o espaço. Se você for a todas as antigas vilas árabes, são abertas ao público. Se reconstruirmos Miske, uma das coisas mais importantes é derrubar todas essas cercas desses assentamentos israelenses. Aí então poderemos falar de uma nova relação entre as pessoas morando lá e usando esse espaço”.
O discurso deste israelense é raridade, encontra pouco eco entre a população judaica de Israel e talvez sobreviva porque surge em Tel Aviv, o centro da população laica, um espaço para pensamentos que políticos como Lieberman prefere ignorar. Eytan Bronstein sabe o “absurdo” que acabara de falar. E brinca: “Lógico, se eu ir a esses assentamentos dizendo que vamos recriar Miske e derrubar as cercas, eles olharão para mim achando que eu acabei de cair do céu”.