O massacre e o fantasma do desaparecimento da Cidade Velha palestina de Hebron
Nesta quarta-feira, 21 de outubro, o palestino Hashem Azzeh, de Hebron, faleceu. Morreu asfixiado por uma bomba de gás, como outras muitas que teve que inalar. O jornalista e diretor de Comunicação do ICArabe, Arturo Hartmann, o entrevistou em três oportunidades. Publicamos sua última entrevista, de fevereiro de 2014, divulgada originalmente no blog O Território.
Ontem, 25 de fevereiro, a Cidade Velha de Hebron parecia funcionar normalmente (pelo menos até o limite do que é possível acontecer nesta cidade palestina). As lojas estava abertas, pelo menos aquelas não atingidas pela ordem de fechamento militar israelense. Mas andando pelas vielas desta parte de Hebron, dentro da região conhecida como H2 (sob controle militar israelense e onde vivem cerca de 600 colonos), éramos lembrados – pelos soldados checando identidades nos postos de controle e com as centenas de portas fechadas na rua Shuhada e arredores – que exatamente há vinte anos o colono Baruch Goldstein atirou para acabar com a vida de 29 palestinos na mesquita de Abraão (ou a Cova dos Patriarcas). Com o clima de tensão que se criou após as mortes, o exército que ocupava Hebron decidiu tomar uma série de medidas restritivas de movimento aos palestinos que acabou dando vantagem aos colonos. As medidas impulsionaram a ocupação.
Passei a manhã de terça com Hashem Azzeh, morador de Tel Rumeida, bairro por onde se espalham postos militares. Ele é vizinho de “Ramat Yishai”, assentamento no coração do bairro.
Antes de me levar a sua casa, quis me mostrar a Sociedade Ibrahim al-Khalil, que fica em uma pequena casa de um andar, com três salas (uma para clínicas abertas, outra para crianças e uma última para aulas e palestras). Há ainda um escritório onde os sete voluntários que iniciaram a associação em 2011 trabalham e despacham. Sim, Hashem mostrou uma obsessão com documentos. Ele precisa estar em dia com a licença da Autoridade Palestina para não ter problemas com o exército israelense. A Associação atende a pessoas de Tel Rumeida e também as que moram na rua Shuhada, parte dela fechada a qualquer circulação de palestinos desde o massacre da mesquita.
Na área fechada de Tel Rumeida e da rua Shuhada, as duas principais áreas atingidas pela ocupação israelense em H2, ainda vivem cerca de 140 famílias. “Outra atividade que fazemos é distribuir comida e dinheiro para pessoas mais pobres. Aqui não há trabalho, não há mais fábricas, clínicas ou escolas”.
Fazer a vida insuportável – com checagens constantes de identidade, violência de colonos que passam impunes e violência de soldados – é um instrumento conveniente para que os palestinos mudem-se para H1, a parte de Hebron sob controle da Autoridade Palestina. Assim, esvaziando-se H2, Israel pode fazer o que muitos palestinos desconfiam ser o objetivo final: juntar os quatro assentamentos dentro da cidade ao de Qiriat Arba, nos arredores de Hebron (o primeiro a ser levantado após a guerra de 1967). Assim, Tel Rumeida (que inclui Ramat Yishai), Beit Hadassa, Beit Romano, Avraham Avinu e Qiriat Arba formariam o esqueleto da cidade judaica de Hebron.
Walid Abu Halaweh é do Comitê de Reabilitação de Hebron (HRC), instalado em 1996 como um departamento da Autoridade Palestina para manter palestinos dentro da área da Cidade Velha de H2. (renovando casas e dando apoio financeiro para famílias dentro da Cidade Velha). Ele gosta de ver sua obra. Conversávamos já após o por do sol, e Hebron estava inundada no escuro. Enquanto andávamos pelos corredores fantasmas das vielas da Cidade Velha, Walid diz: “como este lugar é lindo. Pena que está escuro, deveria haver mais luz aqui. Não sei por que esta parte está sem luz”, afirma enquanto aponta para um ponto lúgubre coberto pela sombra da noite. “Eles já tem a conexão do caminho por meio da Shuhada. Agora eles querem a conexão das casas de Tel Rumeida até Qiriat Arba”, completa, voltando ao tema dos assentamentos. A verdade é que os assentamentos parecem estar se expandindo. Beit Romano está ganhando uma adição ao prédio quase finalizada. Na áreas de Tel Rumeida, um terreno foi fechado para abrigar um sítio arqueológico. Pode ser o primeiro passo para um novo assentamento.
Assim, com a Hebron judaica, o governo israelense teria aquela dose de fanatismo necessária à toda sustentação de um nacionalismo. Aos palestinos resta o papel de serem varridos. Hashem, o “vizinho” de Ramat Yishai, explica de forma didática: “É difícil que um empresário palestino empregue alguém de H2. A primeira coisa que perguntam é onde moram, pois eles sabem que podem se atrasar. Se tem que estar às 7h, 7h30, podem ficar até 1 hora presos nos postos de controle e chegam atrasados. O empregador aceita na primeira, às vezes releva até a décima vez, mas depois não há como”. E insiste: “Com nossa Associação, o que fazemos, quero reconstruir a sociedade e continuar a resistência”.
Os dias que antecederam o 25 de fevereiro foram movimentados em Hebron. Na sexta (21), houve o protesto anual que ocorre desde 2010, “Open Shuhada st.”. Ele foi criado pelo Youth Against the Settlements (YAS), uma organização que buscou na juventude uma base de conscientização política. Eles instalaram um centro para jovens no coração de Tel Rumeida, próximo de Hashem e de “Ramat Yishai”. Eles reocuparam uma casa que estava destruída e era alvo de colonos. No dia 21, cerca de 400 pessoas participaram e alguns ativistas caminharam até a entrada do posto militar israelense para dar início a um confronto de pedras e gás lacrimogênio que durou cerca de 6 horas.
Issa Amro, fundador e atual coordenador do YAS, diz que o movimento “Open Shuhada st.” criou uma conscientização sobre Hebron. Mas o que conseguiu na prática? ‘Se não estivéssemos aqui, os assentamentos estariam conectados, muitas famílias deixariam o lugar e a opinião pública não saberia o que acontece em Hebron. O dia 25 agora é o dia de Hebron”.
Issa se orgulha de o YAS ter construído um jardim de infância em Tel Rumeida. “Trabalhamos durante a noite para escapar das restrições dos soldados. Carregamos materiais por 500m”.
O esforço das diversas organizações, portanto, é manter os palestinos na região da Cidade Velha e Tel Rumeida, uma luta por terra no espaço urbano, mas a realidade é que todo o esforço é pouco diante da situação.
Walid diz que no início dos trabalhos do HRC fez-se uma pesquisa e descobriu-se que dois anos depois do massacre, haviam 500 palestinos na Cidade Velha, uma diferença brutal para os dez mil que viviam na área antes de 1994. Hoje, 17 anos depois do início dos trabalhos do Comitê, cerca de 6500 pessoas vivem nessa área de H2. “Mas esse número não é sustentável. Depende da situação, do que os israelenses impõem. Podemos trabalhar o ano inteiro, mas dois dias de toque de recolher, perdemos todo um trabalho. Algumas pessoas vêm para cá para desenvolver sua vida econômica, com os subsídios e os baixos custos que oferecemos. Mas depois você vai para fora da Cidade Velha, pois as pessoas ficam com medo de ficar aqui. Quando podem, saem”.
O palestino Hisham Shrabati foi fundador do YAS, mas hoje é membro de outra organização, o Hebron Defense Comitee. “Quando o acordo de Hebron (que dividiu a cidade entre a Autoridade Palestina – H1 – e Israel – H2) foi assinado, em setembro de 1995, havia 150 mil pessoas na cidade, sendo que em H2 viviam em torno de 35 mil. Hoje, o número dos residentes de H2 permanece mais ou menos o mesmo, enquanto o número total de habitantes de Hebron ultrapassou os 200 mil. Ou seja, se em números absolutos a população se manteve, significa que perdemos de 20% a 30% dos residentes de H2”.
O Museu de violação de direitos humanos
Em H2, há quase 12km de ruas que os palestinos não podem transitar com carros e há cerca de 800m de rua, parte da Shuhada, que não podem nem caminhar. Rua que era o centro comercial de Hebron.
O fechamento começou em 1984, quando Tel Rumeida começou a ser levantado, mas o marco foi o massacre da mesquita. “Ali, começou-se a matar a vida palestina, a herança da cidade, a vida econômica. Foi o começo de uma política sistemática de discriminação, apartheid, agressão e violações de direitos humanos. Fomos vítimas e ainda assim fomos punidos com toques de recolher, desigualdade, injustiça. Depois de 1994, Hebron se tornou um museu de Direitos Humanos, pois aqui pode se ver todo tipo de violações. Digo a escolas de direitos humanos que tragam estudantes, pois há um estudo de caso em Hebron. Se quer entender a ocupação em três horas, venha a Hebron”, desabafa Issa.
Hisham aponta para um aspecto da desigualdade, a diferença de leis para palestinos e israelenses. “Quando há dois grupos de pessoas vivendo no mesmo lugar, sob dois tipos de leis diferentes, isso é racismo. O palestino está sob lei militar e o seu ‘vizinho’ israelense está sob a lei civil de Israel. Uma diferença de leis em um país é racismo, mas se estamos em território ocupado, é racismo e colonialismo”.
A organização Breaking the Silence, que reporta o abuso do exército israelense em ações nos Territórios Ocupados (Cisjordânia) e na cercada Faixa de Gaza, nasceu por meio de soldados que serviram em Hebron. Em um dos testemunhos, um soldado conta: “Nosso trabalho era parar os palestinos… Dizer que era proibido a eles cruzar… Nós sabíamos que eles tinham outra maneira de cruzar. Então, por um lado, era proibido a nós deixá-los cruzar, e de outro havia várias mulheres idosas que tinham que cruzar por aquela área para chegar a suas casas, então apontávamos onde a passagem estava… pela qual podiam cruzar sem que nós víssemos. Era absurdo… Nosso oficiais também sabiam sobre a passagem: eles nos disseram onde estava… Isso nos fez realmente pensar por que estávamos no posto de controle. Por que era proibido? Era um puro caso de punição coletiva. Era proibido cruzar porque era proibido cruzar”.
O caráter de punição coletiva aos palestinos de Hebron ganha força quando lemos a reposta do exército à petição de 2007 da Associação de Direitos Civis de Israel sobre o fechamento das áreas de H2 aos palestinos. “Item 4 – Com relação a este item nós gostaríamos de informar que como resultado do inquérito realizado pela Brigada da Judeia, ao que parece estão corretos, e de fato aos palestinos têm sido erroneamente negado o movimento de pedestres na rua Shuhada, a oeste do bloco Gross. Uma nova instrução foi portanto enviada aos oficiais da Divisão da IDF (exército) para permitir o movimento de pedestres, que serão, claro, sujeitos a checagens de segurança”.
A caminhada por H2 mostrou que sete anos depois, nada mudou. Para Hashem a situação piorou.
nquanto caminhávamos para sua casa, um colono sacou o celular e começou a filmar o palestino. “Espero que a situação piore ainda mais. Você viu como ele nos recebeu? Duas semanas atrás, atacou meu filho de dez anos de idade. Não podemos fazer nada. Mesmo que entremos com uma ação, não adianta. Vão pedir evidências, e você não tem evidências. E mesmo que tenha vídeos, não é o suficiente. Eles têm planos para mim. Por que mais tirariam fotos minhas? Por que fizeram tantas coisas contra mim?”.
Lembro que quatro anos atrás fiz entrevista com Hashem. Ele deve ter dado milhares de entrevistas sendo o vizinho do assentamento em Tel Rumeida. Não é cansativo expor a vida dia após dia? “É importante criar consciência sobre o tema, pode não ajudar agora, mas pode ajudar no futuro”.
As atuais negociações de paz não parecem trazer otimismo para Hebron. Em 6 de janeiro, o Haaretz publicou declaração do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu deixando claro que não pretende retirar a ocupação de Hebron, pois são locais “importantes para o povo judeu”.
Para Hashem, as negociações ajudam o projeto israelense. “Eles trabalham em silêncio, é a colonização silenciosa. E não apenas em Hebron, mas em Jerusalém, no vale do Jordão, no Negev (região do sul de Israel). Trabalham para expulsar os palestinos passo a passo”.
Publicação original em https://1territorio.wordpress.com/2014/02/26/o-massacre-e-o-fantasma-do-desaparecimento-da-cidade-velha-palestina-de-hebron/