Considerações religiosas sobre o conceito de Direitos Humanos: o caso Irã*
Os muçulmanos dizem que a religião em geral e o sistema de valores teológico, ético e espiritual, em particular os islâmicos, oferecem para a humanidade uma sólida base onde a noção de direitos humanos pode estar baseada. No islã, lei e ética são unidos através da Shari’ah e um muçulmano acredita na Shari’ah ética e espiritualmente, recorrendo a ela como um código legal.
O governo no Irã atualmente é formado por duas facções: a facção conservadora, integralmente formada por clérigos, acredita que as leis na terra devam ser baseadas nas leis de Deus, e a facção reformista, que basicamente acredita que as leis religiosas devam ser modernizadas, atualizadas. Embora tenham diferenças, ambas acreditam na importância do papel da religião nas esferas social, cultural e política.
Os conservadores estão de acordo com a igualdade entre homens e mulheres, liberalismo, constitucionalismo, direito humanos, liberdade político-partidária, liberdade de expressão e democracia, desde que dentro dos limites islâmicos.
Os conservadores são os mais hard lines do governo, e não acreditam no conceito ocidental de direitos humanos, mas no conceito islâmico de direitos humanos. Dizem que direitos humanos e outros conceitos de liberdade já existem no islã, não é necessário emprestá-los do ocidente, ou, como diz Samuel Hungtinton, não querem o “imperialismo dos direitos humanos”. Segundo eles, direitos humanos devem ser entendidos dentro do contexto islâmico.
Os reformistas são um pouco mais liberais a este respeito. Dizem que direitos humanos deveriam ser cada vez menos baseados em conceitos religiosos. Essa é basicamente a diferença entre eles: acreditam nos mesmos princípios, mas com diferentes gradações.
A principal crítica tanto dos reformistas quanto dos conservadores em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é que ela é gerada em um sistema secular, mas apresentada como lei que deve ser respeitada por ser eticamente universal. Acreditam que há um óbvio conflito entre a forma da DUDH como lei e sua filosofia. Como é possível ser uma lei universal e absoluta em um mundo secular e relativista baseado em uma filosofia e fundamentos seculares e relativistas?
As reservas sobre aspectos específicos da ocidental DUDH é que direitos humanos não deveriam ser simplesmente adotados da versão ocidental, tais conceitos podem também ser formulados a partir de diferentes culturas e tradições, de diferentes backgrounds.
Uma das defensoras de que os princípios da religião islâmica deveriam promover valores humanitários e direitos humanos é a advogada e professora universitária iraniana Shirin Ebadi, que recebeu o prêmio Nobel de Paz em 2003. Ela também foi uma das fundadoras das ONGs “Associação para a Defesa das Crianças” e do “Centro para a Defesa dos Direitos Humanos”.
Seu trabalho, centrado na defesa dos direitos das mulheres, crianças e de dissidentes políticos e ativismo na área de literatura e artes, tem o reconhecimento de vários setores da sociedade, incluindo uma facção reformista do governo e cineastas politicamente atuantes como Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf e Samira Makhmalbaf.
Os reformistas apóiam as causas de Ebadi e acreditam que a noção dos direitos humanos deveria ser um casamento entre a visão ‘interna’ (vinda do oriente), e uma visão ‘externa’, que supostamente viria do ocidente.
Embora tendo o apoio de facções reformistas do governo, o ativismo de Shirin não goza de alto prestígio entre os clérigos conservadores. O aialotá Khomeini adere ao argumento de que a herança cultural xiita iraniana é sustentada por um noção distinta de direitos humanos (ou liberdade). Para ele, o mais importante ponto, por exemplo, é que no islã, direitos (hoqûq) pertencem primeiro a Allah, depois à comunidade e depois ao indivíduo.
A maior crítica dos conservadores com relação ao desenho que o ocidental faz dos direitos humanos não é com a maior parte de seu conteúdo, mas como os conceitos são usados contra o islã: o documento foi firmado pelo ocidente, portanto, é um documento do inimigo.
PROMOVER A LIBERDADE SIM, MAS COM MODERAÇÃO (segunda parte do artigo)
Em recente visita ao Irã, o inspetor de direitos humanos das Nações Unidas pretendeu avaliar a aplicabilidade de direitos garantidos na constituição da República Islâmica do Irã, como liberdade de expressão, a partir de conversas com prisioneiros políticos opositores do regime teocrático. “Mais de vinte anos se passaram desde que a Constituição foi promulgada e, até agora, muitos de seus princípios ainda não foram implementados”, disse Shirin Ebadi para a autora.
O dissidente Akbar Ganji foi preso por escrever artigos alegando que o estado promovia assassinatos de opositores e Dr. Hashem Aghajari, um professor universitário, foi sentenciado a morte no ano passado por questionar o direito dos clérigos governarem. Sua sentença de morte foi revogada depois da ocorrência de protestos nas ruas e de uma intervenção direta do Ayatollah Ali Khamenei, mas Aghajari permanece preso.
O campus universitário tornou-se um dos principais front line do confronto entre fundamentalistas e intelectuais, e os intelectuais iranianos têm pagado um alto preço nas suas tentativas de estabelecer democracia no país.
Um ativista político que foi liberto da prisão, Ahmad Zeibadi, disse que as tensões aumentaram depois que as tentativas de introduzir reformas democráticas foram impedidas. 'Depois que saí da prisão achei a sociedade mais tensa e as maiores forças políticas estão mais agressivas”, disse.
Sobre a postura dos dissidentes políticos nos encontros com o inspetor de direitos humanos, por um lado, o jornal ultra-conservador Kayhan questionou a lealdade e o patriotismo daqueles que falam sobre os direitos humanos e, por outro, o jornal reformista Mardom Salari disse que seria um benefício direto para o Irã se o Estado libertasse seus presos políticos.
Qualquer tradição religiosa é suficientemente autoritária para demandar uma prática política. Tentar assegurar a existência de direitos humanos islâmicos representa como a religião é intencionalmente desenhada para legitimar um interesse político.
Isto fica bastante claro com a afirmação do ex-presidente Khatami de que o Estado “deva ter um papel de situar limites práticos para a liberdade individual e direitos humanos”. Preocupado com a repercussão internacional de sua afirmação, procurou atenuá-la acrescentando que tais limites devem ser cuidadosamente definidos de modo que não sejam ´arbitrários´, fazendo com que silencie toda expressão individual, o que contrariaria os valores coletivos da sociedade.
A vivência no coletivo, no entanto, é bastante tensa. É difícil alguém ser totalmente honesto em um espaço público ao falar com um estranho. Suspeitar do outro é um dos aspectos da cultura iraniana e esta suspeita é incentivada pelo governo ao lançar mão de um ‘Musly Duty’, o Ambre-be Marouf va Nahyeh az Monkar. Segundo ele, todo muçulmano tem a obrigação de apontar os erros dos outros e mostrar a eles o caminho certo. Significa também que a República Islâmica ganha muitos e muitos informantes que acusam as faltas daqueles que não fizeram as preces rituais durante o dia, daqueles que não jejuaram durante o ramadã, etc.
Justamente por não ser específica a determinadas civilizações, a defesa dos direitos humanos ou civis em uma sociedade deveria ser a mesma defesa dos direitos humanos ou civis em outra. Portanto, a pergunta “porque os 30 direitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos não se cumprem no Irã?” deveria ser feita também ao ocidente.
* O Irã não faz parte do conjunto de países que forma o mundo árabe. Mas, apesar de a origem desse povo ser principalmente persa, as culturas iraniana e árabe se cruzam em muitos pontos, já que o Irã foi responsável por importantes interações políticas, religiosas e de costumes com países vizinhos, como o Iraque. Interações estas que acabaram por colaborar na forma tomada pela cultura conhecida como árabe. Os assuntos levantados nas discussões culturais iranianas, portanto, têm forte relação com aspectos e costumes do mundo árabe.