Para professor, árabes e latinos compartilham muitos clichês sociais
Pouco se conhece, mas muito nos influenciou. Além de falar sobre a idéia equivocada do Choque de Civilizações, na entrevista exclusiva que deu ao ICArabe, o professor Corriente fala da influência dos árabes na Espanha, que muitas vezes é desconhecida, e também sobre a influência dessa cultura sobre povos que tiveram influência da região da península Ibérica, como o Brasil. O arabista também comenta a cobertura da imprensa sobre o mundo islâmico. ICArabe: Qual a dívida que o Ocidente, principalmente a Espanha, tem com a cultura árabe? Federico Corriente: Há costumes que passaram de lugar a lugar. Comentava esta manhã o ódio ao chapéu, os muçulmanos espanhóis não gostavam que se lhes cobrissem a cabeça. Isso é aprendido dos hispanos. As coisas circulam nas duas direções. Há outros costumes, por exemplo, a maneira de lavar-se dos agricultores em algumas partes da Espanha, quando voltam do trabalho, fazem um processo islâmico, eles não sabem, mas lavam o pescoço e as axilas, não se atiram a água, não se lavam só a cara e as mãos, como fazem muitos cristãos, fazem um aguador, uma forma islâmica. Também temos os jogos, como o alquerque, jogos das crianças. Na cozinha, o uso do “pilantro”, o coentro aqui no Brasil, que se encontra só em lugares onde a presença islâmica durou mais. Além de doces, como por exemplo o turron. ICArabe: E na literatura, qual o alcance dessa influência na Espanha? Corriente: Esse é um tema muito delicado, pois é exagerado pelo setor pró-semítico. A influência existe. É importante, a primeira literatura de prosa castelhana traduzida por Alfonso X eram todas obras científicas, o livro da astronomia, por exemplo, traduzidas dos árabes. Foi uma grande transferência a primeira literatura de prosa. Depois logo houve alguma transferência de poesia popular, tipo zejel. O Arcipreste de Itha escrevia zejel, e não versos castelhanos, escrevia de forma andaluzia. Há uma influência importante, mas não há que exagerar, não é certo que o romance picaresco imite a Maqamah. Há algumas semelhanças estruturais, mas se o parecido não é mais que uma estrutura, haveria de demonstrar que a estrutura se prestou a isso. E se for assim, ficamos na estrutura, e não no conteúdo. ICArabe: Essa influência que passa pelos costumes e pela literatura coloca povos como o hispano e o latino-americano mais próximos dos árabes que dos anglo-saxões, por exemplo? Corriente: Quando um espanhol vai ao Marrocos, considerando que não sabe nada da cultura árabe, trabalhar em um banco ou numa empresa de exportação, lhe custa bastante pouco tempo ter amizade com o marroquino, e o marroquino lhe aceita com mais facilidade do que aceitaria um francês ou um alemão. A facilidade está em entender que se compartilham muitos clichês sociais, então o ajuste que se tem que fazer a uma pessoa de outra cultura, ainda que a cultura seja outra, está facilitada por compartilhar clichês. Muito de nossos costumes, como a generosidade, não é generosidade, não é que o espanhol seja mais generoso que o francês. É que ao espanhol lhe dá vergonha de não parecer generoso. Ninguém é generoso, mas o que há é um clichê social de que ser avaro está muito mal, enquanto na França isso é normal. Na França, um bom preço se diz um “preço razoável”. O espanhol, como um árabe, diz “preço barato”, não razoável. Então é um clichê que diz respeito a uma qualidade que se pode ou não ter, mas que está mal visto não fingir. ICArabe: Qual o principal problema na idéia do choque de civilizações? Corriente: Existem muitos problemas. Para mim é quase incrível que um homem culto como (Samuel) Huntington se prestou a produzir esse monstro, porque não tem em conta a psicologia do gênero humano. Ignoramos as tensões largas. Hoje posso ter uma discussão com um senhor e até brigar com ele, mas não vou estar brigando com ele todos os dias. O homem é um animal bastante agressivo, mas prático. Não tem a agressividade que possa ter o rinoceronte, que possa ter uma espécie de felinos. O homem chega a um nível de tensão, explode e o nível baixa. Pensar que vamos ter uma luta contínua de duas civilizações até que uma elimine a outra, isso só é possível quando uma é muito mais forte que a outra. Isso sucedeu na ilha de Cuba, quando chegam os espanhóis e encontram uma tribo em que os habitantes são poucos e desarmados, e são eliminados. Aí há um choque de civilizações, mas um choque muito desigual, e isso durou muitos poucos anos. Há passado outras vezes na história, que quando se choca uma mosca contra um planeta, a mosca desaparece. Mas quando são dois astros de tamanho parecidos, os dois grandes, o choque é problemático. Se colocarmos em consideração o mundo ocidental, com seus 2000 anos, e o mundo islâmico, com 1500, não é possível imaginar um choque continuado. Isso sabe qualquer sociólogo e qualquer historiador. Então é imoral pensar em destruir a outra comunidade. E logo há um problema prático, tem um custo enorme. Encontro na teoria de Huntington todos esses inconvenientes, mas suspeito que seja uma teoria de encomenda pelos neoconservadores para justificar o que eles já pensavam fazer para manter o controle dos Estados Unidos sobre o petróleo. ICArabe: E na sua análise, como se comporta a cobertura da imprensa acerca do mundo árabe-islâmico? Corriente: Pode se classificar a cobertura basicamente em duas: uma destinada a difamar e a amedrontar o ocidental para criar esse estado de ânimo em que pense que tem que se defender destruindo ao outro. Uma segunda medianamente informada. O que existe, na Espanha, e em toda a Europa, são jornalistas de boa-vontade. Existe o jornalista que não podemos chamar de esquerda, mas de realmente liberal, que não quer ganhar, mas quer conhecer o que ocorre e contar se lhe deixa o seu jornal. Porque essa é outra questão, a de que lhe deixem contar. Há sempre uma luta entre o jornalista e a direção, mas nesse caso, é difícil que a censura possa eliminar toda a informação. Um jornal como o “El País”, quando trata de questões do mundo islâmico é muito mais neutro e está muito melhor informado que um jornal como “La Razón”, que está vendendo a doutrina neoconservadora.