E se fosse você a precisar de refúgio?
João Amorim, coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), na UNIFESP, faz uma reflexão sobre a situação dos refugiados pelo mundo.Proponho a você que tente responder às seguintes perguntas: O que você faria se, de um dia para outro, perdesse tudo que mais ama na vida? Como você se sentiria se fosse obrigado a deixar a sua casa, sua cidade, seu país, simplesmente porque alguém que não conhece e nunca viu decidiu que todos os que têm sua cor, sua raça, sua orientação sexual, sua religião, sua etnia, sua religião ou sua opinião política devem morrer? Já imaginou como se sentiria se a cidade em que você vive fosse, de um dia para o outro, engolida pelo inferno da guerra e você tivesse de fugir, sem destino certo, apenas com a roupa do corpo, ou com o pouco que conseguiu juntar, para não morrer?
São situações desesperadoras e cenas terríveis de se imaginar, não?
Pois bem. Infelizmente, essa é a realidade que está por trás dos mais de 59 milhões de seres humanos forçados a se deslocar de suas casas em todo o mundo por questões relacionadas a conflitos armados, preconceito racial, étnico, religioso, de gênero ou orientação sexual, perseguição política ou ideológica ou grave e generalizada violação de direitos humanos. Destes, quase 22 milhões são refugiados e solicitantes de refúgio.
Segundo a Organização das Nações Unidas, refugiados são pessoas comuns, de todos os gêneros e idades, que foram forçadas a abandonar seus lares devido a conflitos armados, violência generalizada, perseguições religiosas ou por motivo de nacionalidade, raça, grupo social e opinião pública, e buscam abrigo e proteção em outros países para reconstruir suas vidas com dignidade, justiça e paz.
Ao se verem forçadas a sair do seu local de vida habitual, deixam para trás não apenas a realidade de agressão, ameaça e violação que lhes gerou o fundado temor de perseguição, mas também suas raízes e referências socioculturais, sua história, seus sonhos e projetos. Muitas vezes, deixam para trás seus entes queridos, seus afetos, sua referência cultural e humana.
Não fazem essa escolha por espírito de aventura ou por ambição, mas por desespero e medo de morrer, e na esperança de conseguir sair daquela situação e de encontrar abrigo e proteção, ainda que em terras distantes.
Chegam por vezes sozinhos – assustados e traumatizados, e sem saber do paradeiro e do destino de seus entes queridos –, a lugares completamente diferentes de sua terra natal. Não falam o idioma. Não conhecem ninguém. Sentem fome. Sentem sede. Sentem frio. E, mais que tudo, ainda sentem muito medo.
No caminho, não é raro serem vítimas das quadrilhas e máfias do tráfico de pessoas ou mesmo são condenadas à invisibilidade e a rejeição.
Muitos sequer conseguem chegar ao seu destino incerto. Naufragam nas águas do Mediterrâneo, ou do Atlântico, ou do Índico; morrem de desidratação, ou de fome, ou de insolação, ou de doenças oportunistas que se instalam com a fraqueza e o cansaço.
Como todo ser humano comum, suas vontades e anseios básicos consistem em poder desenvolver suas vidas e atividades cotidianas, em um ambiente que lhes propicie, além de um entorno de proteção e de segurança, a sensação de pertinência e integração sociais.
Daí a importância vital de se entender a condição de um refugiado ou solicitante de refúgio e de se estabelecer medidas de integração local eficazes e efetivas dentro do regime jurídico de proteção dos refugiados.
A proteção dada por um determinado poder soberano a estrangeiros vítimas de perseguição existe desde a Antiguidade. No século XX, esta prática de proteção ganha a disciplina e a institucionalização do direito internacional, adjetivada pelo termo humanitária. A proteção internacional humanitária tem como um de seus principais instrumentos o refúgio[1].
Mas, para ser efetiva, a proteção internacional humanitária não pode ficar apenas no direito internacional. A conduta de acolhimento, de proteção, de integração, de respeito aos direitos humanos deve estar inserida nas leis internas dos Estados e, principalmente, ser uma realidade cotidiana na cultura social deste país.
O Brasil, no âmbito jurídico, é um país modelo em termos de reconhecimento de direitos e recepção de refugiados e solicitantes de refúgio.
É um dos poucos países no mundo que estabelece em lei uma política pública clara em relação aos refugiados e solicitantes de refúgio – a lei 9.474/97 –, que reconhece direitos básicos desde o momento da solicitação e estabelece um procedimento administrativo com etapas, exigências e órgãos decisórios específicos e com competências bem definidas.
Ao contrário de muitos países europeus – que diariamente têm protagonizado cenas lamentáveis de xenofobia e um vergonhoso jogo de empurra-empurra a respeito de uma solução efetiva para os refugiados que chegam ao continente –, o Brasil não impõe restrições à chegada de solicitantes de refúgio, nem antecipadamente os julga ou fecha suas fronteiras.
A posição do país é a de garantir, aos solicitantes de refúgio, o reconhecimento e a concessão de direitos básicos a todos (como, por exemplo, direito à estada regular, direito a um documento de identificação, direito à saúde, à proteção social, à educação etc.), enquanto dura o processo administrativo perante o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) – órgão encarregado de analisar e processar os pedidos de reconhecimento da condição de refugiado –, e assegurar o respeito a estes direitos àqueles que têm seu pedido de refúgio aceito pelo governo brasileiro e, por isso, estão sob sua proteção.
Mas, o fim do sofrimento e da condição de vulnerabilidade destas pessoas não depende apenas de uma lei clara, ou de um procedimento administrativo e do reconhecimento de direitos.
Estes passos são obviamente importantes e fundamentais, mas, para a efetiva inserção dos refugiados numa sociedade é necessário que esta os acolha, os veja como seres humanos, como pessoas iguais a qualquer um de seus membros, que os trate com igualdade, sem racismo, sem discriminação, sem segregação.
E, principalmente, que assegure a estes seres humanos a oportunidade de recomeçar as suas vidas em paz, para que possam tranquilizar seus medos e buscar a realização de seus desejos de vida normalmente como toda e qualquer pessoa.
A primeira e uma das principais barreiras enfrentadas pelos refugiados ao chegar a um novo país – e que agrava profundamente a sensação de desterro e de desespero – é a do idioma.
Não saber se comunicar na língua do país dificulta imensamente a inserção social do refugiado. Essa barreira o impede, por exemplo, de conhecer e de exercer plenamente seus direitos, de se locomover livremente, de se comunicar com as autoridades locais, de conseguir um trabalho.
Para ter uma pequena ideia do que isso representa, imagine a seguinte situação: você, que lê esta coluna, desperta amanhã em uma cidade completamente desconhecida, por exemplo, no interior da China, ou da Arábia Saudita, onde ninguém fala outro idioma a não ser sua própria língua nativa (a qual você não conhece). Todas as placas, informações, jornais, etiquetas de produtos, nomes de ruas, livros, revistas, estão escritos apenas com o alfabeto local. Como você se sentiria?
Nestas condições, você iria desejar que alguém, com boa vontade, o ajudasse, certo?
Ou seja, você desejaria que alguém entendesse a sua dificuldade e a sua situação e te ajudasse a se integrar naquela sociedade.
Pois bem. É exatamente isso o que acontece diariamente com a maioria dos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil e em outros países.
Por isso é tão importante que a sociedade como um todo compreenda a condição e as dificuldades diárias dos refugiados.
Além de uma série de problemas e de questões que também são enfrentados por boa parte da população carente do Brasil, os refugiados e solicitantes de refúgio, em sua esmagadora maioria, ainda têm de lidar com problemas que são específicos de sua condição de estrangeiro: a barreira do idioma, atitudes xenófobas, preconceitos culturais, dentre outros.
A integração local dos refugiados faz parte da proteção inter¬nacional no seu sentido mais amplo, como obrigação conjunta do Estado e da própria sociedade civil sobretudo no que se refere ao acesso a políticas públicas de saúde, educação, trabalho, bem como a todas as questões relacionadas à prática da cidadania.
Mais do que ajuda humanitária, é neces¬sário que cada vez mais a sociedade brasileira distribua humanidade.
Numa época em que mercadorias e di¬nheiro possuem mais importância e transitam internacionalmente com mais facilidade do que os seres humanos; numa atualidade onde os discursos de ódio perdem a vergonha e ganham facilmente as bocas de pessoas sem escrúpulos e imbuídas dos mais escusos interesses, é necessário e urgente que a sociedade se mobilize e aja no sentido de acolher os refugiados e fazer prevalecer o elo mais elementar que nos une a todos: a humanidade.
Não é assim que você gostaria de ser tratado?
[1] Para conhecer e entender a evolução histórica do instituto do refúgio e da proteção humanitária, AMORIM, João Alberto Alves. Concessão de Refúgio no Brasil: A Proteção Internacional Humanitária no Direito Brasileiro. Revista Internacional Direito e Cidadania, disponível em http://www.reid.org.br/?CONT=00000303
João Amorim é Professor de Direito Internacional da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), na UNIFESP. Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP.
Texto originalmente publicado na coluna "Pensando Direto" do portal Observatório do Terceiro Setor.
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