Os 30 minutos de uma nova vitória argelina
As imagens que chegavam das ruas da Argélia ontem, quinta, 26, impressionavam. A explosão dos torcedores após o apito final era o extravasamento de sentimentos que iam além da vitória em campo. Claro, pela primeira vez em sua história, os argelinos chegam a uma fase de finais de Copa do Mundo. Agora, encaram na próxima segunda, os alemães.
Mas o significado esportivo é ofuscado quando pensamos nos elementos políticos que podemos tirar da conquista argelina. E, afinal, não é aconselhável desdenhar do conteúdo político no futebol no momento que as ruas brasileiras nos ensinam como marchar em meio à torcida, um esforço de tomar de volta o que foi usurpado, a manifestação indubitável na construção da arena pública da democracia permeada pelo futebol.
O futebol é, portanto, o encontro explosivo de realidades sociais e paixão. E a classificação da Argélia, impressionante como foi, nos faz arrepiar não só pelo que ocorreu dentro do campo, mas do que lemos fora dele.
Lembro de dois jogos da Argélia a que assisti em 2010. Foram duas derrotas. A primeira, em fevereiro daquele ano, 4 a 0 para o Egito, disputa da semifinal da Copa Africana de Seleções. A outra, alguns meses depois, foi a eliminação ainda na fase de grupos na Copa da África do Sul, após derrota por 1 a 0 para os Estados Unidos. Em ambas as oportunidades, eu estava em Beit Sahour, Cisjordânia, nos Territórios Palestinos Ocupados.
Os palestinos sofreram as duas vezes. Em fevereiro, torciam para que a Argélia vingasse a colaboração do então presidente Hosny Mubarak com Israel no cerco à Gaza. Em julho, o time árabe poderia bater nos EUA, os “mediadores da fraude”, como o acadêmico palestino Rashid Khalidi classificou baseado nos infrutíferos “processos de paz” norte-americanos.
E se quisermos pensar na mistura do futebol com a geopolítica, para os árabes, desde 2011, o contexto apresenta realidades caóticas e desesperadoras. A Faixa de Gaza continua cercada e sufocada, a Cisjordânia agora sofre a maior operação militar israelense desde 2000 com objetivo de destruir a reconciliação Fatah-Hamas. A Síria vive dias sangrentos, com uma população presa no fogo cruzado de um governante autoritário e forças estrangeiras que defendem os seus interesses na região. Iêmen e Somália, como o Paquistão, contam os mortos na campanha de drones de Obama. O Egito, aparentemente, explodiu para nada mudar. E o Iraque pode caminhar para um cenário de desintegração, resultado da inépcia de projetos políticos locais e da sede estrangeira, mais especificamente da “destruição criativa” que os EUA lançaram sobre a região.
Voltando na História, a Argélia traz em si as feridas do Estado pós-colonial. O seu esforço armado para se libertar da França habita as imaginações de povos ainda dominados. É obvio que seja um exemplo para os palestinos. Mas a conquista da libertação do jugo francês direto deu forma para dominações econômicas a partir de uma esfera de influência que a França garantiu após os Acordos de Evian.
E a construção política interna talvez não conseguiu transpor a segunda etapa prevista por Frantz Fanon, quando após a libertação da força colonial o povo se livra dos lacaios nacionais que serão a nova fachada da dominação. Adicione a isso uma guerra civil nos anos 90 e um sistema político pouco transparente numa vacilante construção política pós-libertação.
No futebol, a Argélia deve encerrar sua participação na Copa na próxima segunda, quando joga as oitavas de final contra a favorita Alemanha, em Porto Alegre. Mas como o futebol tem seus próprios caprichos, imaginemos que os argelinos vençam. E que nas quartas de final peguem a França, em um acerto de contas lúdico e histórico contra os franceses. E, então, os argelinos nas ruas da capital Argel, ou os que buscaram a periferia de Paris como alternativa econômica para serem mão de obra barata, viveriam 90 minutos inesquecíveis, em que o campo e a bola seriam a metáfora resumida da História.
Podemos ir mais longe. Imaginemos os argelinos “invadindo” as ruas e inundando Paris como a ironia indesejável para uma França que os ainda vê pela lente xenófoba moldada pelo esforço da dominação colonial. Eles dançariam na Paris capital da França revolucionária e colonialista.
Imagine ver ainda a reação de Zinediné Zidane, o herói francês (e carrasco brasileiro) de origem argelina. Ou do atual atacante Karim Benzema, que se cala durante a execução da Marselhesa. Seria o acerto de contas temporário do futebol, que levantaria em um só momento o orgulho das vitórias, a passada e a presente, e a humilhação da nova dominação. O futebol seria o condutor explosivo da realidade argelina.
Voltando ao presente, a Argélia pode ter jogado por outros árabes sufocados, seja por seus governos e lideranças, seja pelas intervenções imperialistas do século XXI, o turbilhão da “destruição criativa” dos EUA.
Na Palestina, em 2010, os palestinos torciam pela Argélia porque precisavam de uma conexão com o mundo que não fosse absolutamente decepcionante, que não estivesse cheia do ressentimento alimentado pela omissão, quando não a própria colaboração na opressão israelense.
A força simbólica do futebol não pode ser ignorada. Os palestinos, por exemplo, conseguiram em maio um feito inédito, ao ganhar de 1 a 0 das Filipinas na fase classificatória para a Copa da Ásia. Em janeiro, na Austrália, vão disputar o torneio no grupo D, com Japão, Iraque e Jordânia. É a primeira vez que jogam o torneio.
A conquista, pelos critérios esportivos, é ridícula pelos padrões brasileiros. Mas, simbolicamente, a conquista palestina, de jogadores sem um país, divididos pelas barreiras impostas por Israel, vale muito mais do que todos os títulos mundiais que o Brasil já ganhou. Ali, talvez os palestinos possam constranger jogadores iraquianos e jordanianos com base na ação de seus governos, seja pela inépcia do abandono, quando não pela aberta traição.
Os argelinos, naqueles 30 minutos que separaram o gol de empate contra a Rússia até o apito final que decretou a classificação, talvez deram momentos de pequena certeza de pertencimento a um mundo em colapso. Mas o futebol tem o seu limite, e pode apenas alimentar temporariamente imaginações e sentimentos de orgulho sufocados por duras realidades.
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