Sua Majestade o coelho e o pato manco
Pouco interessam a validade teórica ou a coerência da tese que se defende; o importante é o orientador ou o padrinho que se tem.
Fábulas são pródigas em encontros de coelhos e leões. A minha favorita imagina um coelho acadêmico que prepara tese cujo argumento central diz serem os coelhos os verdadeiros predadores de raposas, lobos e outros bichos carnívoros; um a um, raposas e lobos, atraídos pela perspectiva de uma bela refeição, mas intrigados pelo ar compenetrado com que o coelho escreve, e logo divertidos pelo absurdo da tese, são encaminhados para a toca ou para trás de uma moita onde o leão os devora e distribui seus ossos em pilhas ao seu redor.
A mensagem pretendida é que pouco interessam a validade teórica ou a coerência da tese que se defende; o importante é o orientador ou o padrinho que se tem.
A pequena estória não detalha a natureza do arranjo que une coelho e leão e que os leva a cooperarem na empreitada de caça. A conclusão de que o leão seria o orientador elimina apenas, em princípio, a possibilidade de ser ele mero instrumento nas mãos do coelho, as presas terceirizadas que permitiriam que este se transmutasse em predador, ainda que não fosse por amor à carne.
O maior poder do felino, que permite ao coelho a defesa de sua tese, é também o elemento que falsifica e nega a própria tese: a parceria com o leão não faz do coelho um predador de lobos e raposas; faz, antes, com que qualquer poder do coelho seja dependente da vontade do leão.
Assim, se viesse o dia em que o rei dos animais decidisse rever os termos do acordo e retirasse seu apoio incondicional à tese do coelho – ou porque teria se fartado de carne, ou porque o desaparecimento de tantos lobos e tantas raposas comprometeria o equilíbrio natural, ou porque as notícias do poder excessivo daquele ser orelhudo comprometeriam a imagem do leão e projetariam sombras sobre a legitimidade de seu governo sobre a floresta e tudo que nela há – qual não seria nossa surpresa se víssemos de repente o coelho avançar sobre o leão, com a esquerda agarrar-lhe a juba e com a direita esbofetear-lhe violentamente a face e logo, com as patas à cintura e os olhos esbugalhados, vermelhos, gritar com imensa raiva e infinita maldade: quem você pensa que é?! Sou eu quem manda neste mato! essa coroa é minha!!
Foi algo parecido que aconteceu há alguns dias, quando os Estados Unidos deixaram passar no Conselho de Segurança da ONU – vil traição! – uma resolução, que talvez tenha ajudado a cozinhar nos bastidores – suprema traição! infâmia! – que condenava a contínua construção de assentamentos em territórios palestinos ilegalmente ocupados. E a fúria só aumentou quando John Kerry discursou apontando os mesmos assentamentos como o principal óbice à paz.
Não que alguém tenha chegado a denunciar a verdadeira natureza dos assentamentos. O máximo que se permite dizer é que constituem passos que impossibilitarão a existência ou a viabilidade de um Estado Palestino. Mesmo as violações dos direitos fundamentais dos palestinos só são lembradas de modo acessório.
A verdadeira face da colonização da Cisjordânia e sobretudo do entorno de Jerusalém, aquela do roubo da terra e da limpeza étnica nunca é evocada (pause um pouco o leitor antes de julgar se o uso da expressão forte se justifica ou se é mera estridência retórica que convida alguns a abandonar a leitura).
Tudo que se diz, na verdade, é para o bem do coelho. O que se quer, no limite, é proteger Israel de si mesmo, evitar, no extremo, que cometa suicídio. O sentido pretendido para isso é que, sem os dois Estados, ficará obstado o propalado projeto de um país a um tempo judeu e democrático – pessoas inteligentes não hesitam por vezes em torturar as palavras, combinando os contrários, para fazê-las dizer o impossível.
A continuarem os assentamentos, dizem alguns amigos de Israel, não havendo o reconhecimento de uma Palestina onde se possa concentrar todos os palestinos, a incorporação destes num Estado único comprometerá as chances de que seja esse Estado judeu, ou seja, mais de seus cidadãos judeus e de outros judeus do mundo do que seus cidadãos não judeus, ainda que naturais da terra, e em grande medida puro geneticamente porque se pretende que deva o território pertencer aos beneficiários de uma promessa divina e seus descendentes apenas.
Por outro lado, dizem, não poderá esse Estado ser democrático, especialmente se quiser de fato ser judeu. Isso porque terá que controlar a demografia para evitar que minorias não judias se tornem maioria e terá que estabelecer diferenças entre seus cidadãos que podem no limite chegar a um sistema de apartheid.
O que esquecem de dizer é que o apartheid está em grande medida instalado, nos territórios ocupados e em Israel, e que ele também participa de um esforço contínuo de mudança da demografia e de seu controle. Os assentamentos são apenas a ponta mais visível da máquina que opera para limpar a terra de palestinos.
(então, sobre vocabulário, quando alguém se instala na terra dos outros, se substitui aos habitantes naturais e impede o acesso destes a partes crescentes de seu território, à sua água, às suas lavouras e outros trabalhos e, portanto, os convida a sair, a isto se chama limpeza étnica, por mais que se queira afogar o nome em complexidades regulatórias e voltas retóricas).
Ainda assim, festejemos a primeira resolução do Conselho de Segurança em muito tempo a censurar Israel e o primeiro discurso de um Secretário de Estado que faz criticas abertas ao maior dos aliados, o melhor dos amigos, ainda que logo corram os americanos a nos dizer que não se pode gravar na pedra a fala de Kerry: nem se pense em propor um voto no mesmo Conselho de Segurança sobre seu conteúdo; os Estados Unidos vetariam!
É comum dizer que o Presidente americano é, no último ano de seu segundo mandato, um pato manco, já não pode muito. Obama esperou até ser um pato manco das duas patas para fazer um gesto mais significativo de censura contra Israel.
Talvez essa crítica derradeira deixe algum legado, e talvez seja um sinal de que a posição israelense se aproxime do limite até onde seus muito generosos apoiadores – aqueles que hoje, junto com o leão, tomam bofetadas furiosas do coelho – podem ir.
Mas talvez a mensagem central seja mais sombria: só um presidente americano que já não tenha uma carreira política futura – que poderia ser esmagada pelas garras do coelho todo poderoso – pode fazer o menor dos gestos.
Se o leão não corrigir logo o rumo, só nos restará esperar, ou que venha uma revolução dos bichos, alguns cansados do arranjo injusto, outros cansados de servir a um coelho caprichoso, ou que a natureza venha estabelecer um novo equilíbrio. E a natureza, como se sabe, não tem compromisso com a justiça, mas é sempre implacável.
Salem Nasser é professor de Direito da FGV e ex-presidente do ICArabe.