Gaza, Bolsonaro e o sionismo
Por Soraya Misleh
Quem visita a Palestina ocupada, no geral, não apenas é fortemente impactado pelo exemplo de resistência cotidiana da população local, diante do apartheid e colonização brutais israelenses, como retorna com uma missão: transmitir o que viu de modo a fortalecer a solidariedade internacional. Esse é o principal pedido feito pelos palestinos àqueles que procuram conhecer sua realidade de opressão. Eles costumam expressar o sentimento de que o mundo os abandonou. Não à toa: são mais de 70 anos de cumplicidade com o projeto colonial sionista.
Neste 29 de novembro – Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino, data que marca a recomendação em 1947 de partilha da Palestina pela Assembleia Geral das Nações Unidas em um estado judeu e um árabe –, vale reiterar o chamado a que se coloque em prática a missão dada pelos palestinos.
No Brasil, a tarefa é urgente, diante da iminência de aprofundamento da cumplicidade histórica – o diplomata Osvaldo Aranha presidiu a sessão na ONU há 71 anos quer representou sinal verde à limpeza étnica na Palestina e seguiu o voto dos Estados Unidos, de olho nas relações com o imperialismo emergente pós-Segunda Guerra Mundial.
Enquanto entre 11 e 13 de novembro Gaza era mais uma vez bombardeada, no país sul-americano estava em pauta não a necessária solidariedade, mas o anúncio por Bolsonaro de transferência da Embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, seguindo assim os maus passos de Trump. Promessa de campanha, um aval desta vez explícito e pleno ao projeto colonial sionista, cuja expansão se centra neste momento justamente na capital histórica da Palestina: Jerusalém.
Nas notícias sobre Gaza, prevaleceu na mídia brasileira a falsa retórica de que os bombardeios eram resposta a provocação do Hamas, partido que administra a estreita faixa. Segundo fontes palestinas, o que ocorreu foi exatamente o inverso, o que não é novidade. Em encenação digna de filmes de Hollywood, infiltrados sionistas entraram no território palestino ocupado – e sob desumano cerco há mais de 11 anos – e se enfrentaram com brigadas da resistência. Na busca por resgatá-los – e com o pretexto ideal –, Israel bombardeou a faixa de forma severa (mês a mês realiza ofensivas a “conta-gotas”). Matou pelo menos sete palestinos e feriu dezenas. A resistência, que não se dobra há mais de 70 anos (desde a nakba, a catástrofe, com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948, mediante limpeza étnica na Palestina), abateu um infiltrado e feriu outros. Além disso, lançou mais de 300 foguetes. Um deles atingiu um ônibus militar vazio e cercanias, destruindo parte da estrutura bélica da ocupação.
A escalada foi interrompida após acordo informal de cessar-fogo no dia 14 de novembro. Mediado pelo Egito, inclui medidas que representam alívio ao cerco e, portanto, foi celebrado como vitória da resistência em Gaza. Entre elas, maior flexibilidade na abertura da fronteira com o país árabe e ampliação das milhas náuticas permitidas aos pescadores palestinos. O cessar-fogo levou à renúncia do ministro da Defesa sionista, Avigdor Lieberman. Um dos pontos tenta, contudo, enfraquecer a resistência, ao demandar a retirada das organizações da Grande Marcha do Retorno – realizada semanalmente desde 30 de março (para os palestinos, o Dia da Terra). A população de Gaza, todavia, segue com os protestos.
Mais negócios
O sentimento de vitória da resistência é dividido pela percepção de palestinos, reiterada nas redes sociais: abandono pela chamada “comunidade internacional”. Novamente com razão. Diante de situações dramáticas como a que vivem em especial em Gaza – mas não só –, não há qualquer constrangimento dos governos em seguir com seus acordos e negócios com Israel. Pelo contrário, cada bombardeio é uma vitrine para apresentar ao mundo as novas armas testadas em campo. Ou seja, sobre palestinos, inclusive mulheres, crianças e idosos.
O Brasil, que infelizmente se tornou nos governos Lula e Dilma um dos cinco maiores importadores de tecnologias militares israelenses, seguirá, sob Bolsonaro, vergonhosa trajetória ascendente nessa direção. Além de anunciar que fará o gesto simbólico de transferência da Embaixada – compatível com sua declaração de amor por Israel –, o capitão reformado agora elevado a presidente da República promete ainda mais acordos com a potência que ocupa a Palestina.
Os governos estaduais que ampliaram a aquisição de blindados e equipamentos para suas polícias também seguirão com esses investimentos, cujo desenvolvimento e aperfeiçoamento se dá às custas de “cobaias” humanas. O governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, viaja no dia 3 de dezembro para Israel, juntamente com o deputado Flávio Bolsonaro, para firmar negócios. Witzel pretende fornecer ainda mais armas em sua licença às polícias para ampliarem o genocídio da população pobre e negra nas periferias, cujos números já são assombrosos em todo o País. Segundo o Atlas da Violência de 2018, apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência no Brasil – 71,5% assassinadas a cada ano são negras.
A transferência da Embaixada brasileira para Jerusalém, por seu turno, teve revés importante: o Egito adiou visita oficial brasileira ao país árabe, na sequência do anúncio de Bolsonaro no pós-eleições, expressão do risco de retaliações comerciais por parte de países árabes com a medida – sabedores que são que a ação tem potencial de gerar protestos junto às suas populações. Não obstante, nos Estados Unidos, o deputado Eduardo Bolsonaro acaba de afirmar que a transferência da Embaixada está decidida.
É mister unificar o repúdio a ações como essas sobretudo na América Latina e fortalecer em toda a região a campanha de boicotes, desinvestimento e sanções (BDS) a Israel, que contempla, entre as demandas fundamentais do povo palestino, o retorno dos milhões de refugiados às terras de onde foram e continuam a ser expulsos. E, mais do que nunca, se inspirar na sua resistência heroica. Rumo à Palestina livre, do rio ao mar!
---------------
A jornalista palestino-brasileira Soraya Misleh é diretora do ICArabe, mestre em Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora do livro “Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina”.