Setenta e dois anos da Nakba: história de uma expansão colonial e limpeza étnica contínuas
Por Soraya Misleh
“Os que lavam as mãos o fazem numa bacia de sangue.” A frase do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) não poderia representar melhor a contínua Nakba (catástrofe) a que estão submetidos os palestinos há 72 anos. Ou seja, desde a criação do Estado de Israel mediante limpeza étnica planejada em 15 de maio de 1948, que culminou na expulsão violenta de 800 mil palestinos de suas terras e destruição de cerca de 500 aldeias. Foram ainda cometidos genocídios em dezenas de aldeias nesse processo que foi a pedra fundamental do projeto colonial inaugurado em fins do século XIX e em expansão contínua.
A referência é ao sionismo político moderno, cujo pai foi Theodor Herzl, judeu nascido na Hungria, que exercia em Viena, então capital do Império Austro-Húngaro (1867-1918), a função de jornalista e autor teatral. Integrado à sociedade local, não tinha interesse pelo judaísmo ou por questões correlatas. O ponto de virada foi, conforme relatado em sua obra Der Jundenstaat [O Estado judeu], de 1896, o “Caso”, como ficou conhecido na França o caso Dreyfus. Refere-se à acusação de traição que sofreu naquele país o oficial Alfred Dreyfus, em 1894, por ser de origem judaica.
A partir desse acontecimento, Herzl teria concluído que não haveria qualquer esperança de assimilação. Assim, a única solução seria que os judeus vivessem em seu próprio estado. Essa alegação, contudo, é questionada por estudiosos israelenses, como descreve o historiador Ilan Pappé, em "A limpeza étnica da Palestina" (Editora Sundermann). Segundo indicam diversos teóricos, Hertz separava, assim, a emancipação dos judeus da luta geral contra as opressões na Europa, com uma proposta reacionária, colonial. E, para tanto, realizaria acordos com aqueles que justamente promoviam o antissemitismo - característica que manterá ao longo da história.
Em "O Estado judeu", Hertz não sugeriu exclusivamente a Palestina para sua criação. Coloca a questão: “Devemos preferir a Palestina ou Argentina?.” Sua resposta é de que a “Sociedade (dos Judeus) aceitará o que lhe derem, tendo em consideração as manifestações da opinião pública a este respeito”. Na sua análise, nos dois locais houve experiências bem-sucedidas de “colonização judaica”. Em 1897, ano seguinte à publicação, durante o I Congresso Sionista realizado na Basiléia, Suíça, que reuniu 200 delegados do Leste da Europa, a Palestina acabou por ser escolhida:
Esse nome por si só seria um toque de reunir poderosamente empolgante para o nosso povo. (…) Para a Europa, constituiríamos aí um pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a barbárie. Ficaríamos como Estado neutro, em relações constantes com toda a Europa, que deveria garantir a nossa existência.
Herzl empreendeu esforços para obter o apoio das elites judaicas e governantes europeus ao projeto sionista. Segundo o historiador israelense Avi Shlaim em "A muralha de ferro", seu pressuposto “não declarado” e de seus sucessores era que o movimento alcançaria o seu objetivo “não através de um entendimento com os palestinos locais, mas por meio de uma aliança com a grande potência dominante do momento”.
Esse parceiro seria a Grã-Bretanha, que vislumbrava a Palestina como sua “futura aquisição”. Como parte de sua estratégia de convencimento, Herzl explanou que os britânicos poderiam se beneficiar da criação em região de Gaza de um “oásis sionista”, ao que seria necessário levar água do Nilo através de um canal, como explicita Pappé. Num primeiro momento, esse plano foi frustrado, dada a objeção do lorde inglês Cromer, que comandava o Cairo. Herzl propôs, como alternativa, a instituição do Estado judeu temporariamente em Uganda, então colônia inglesa, para depois passar à Palestina. O que foi visto como traição por outras lideranças sionistas, como Chaim Weizmann (1874-1952), uma vez que o próprio idealizador do Estado de Israel havia nacionalizado o judaísmo, sinalizando o local definido no I Congresso Sionista. O plano de Uganda, consequentemente, não foi levado adiante.
A Palestina voltou a ser central na proposta sionista. Após o congresso, dois rabinos foram enviados para lá para reconhecimento do local. Em telegrama, eles descreveram o cenário com que o movimento que visava criar um estado judeu naquelas terras teria que lidar: “A noiva é bela, mas está casada com outro homem.” Em outras palavras, os visitantes anunciavam que a Palestina não era um descampado, um lugar deserto e inabitado. Como conta Pappé,
Nas vésperas da Guerra da Criméia (1853-1856), cerca de meio milhão de pessoas viviam na terra da Palestina. Eram de língua árabe. A maioria era muçulmana, mas cerca de 60 mil eram cristãos de várias denominações e cerca de 20 mil eram judeus. Além disso, tinham que tolerar a presença de 50 mil soldados e funcionários otomanos, assim como de 10 mil europeus.
Segundo Shlaim, independentemente da linha sionista, que incluía os denominados trabalhistas, os moderados e os revisionistas – cujo fundador foi o judeu russo Zeev Jabotinsky (1880-1940) –, a ideia de que era preciso o apoio de uma grande potência para consolidar o projeto sionista prevalecia. Assim como a necessidade de estimular a imigração judaica e transferir os palestinos nativos, usando a força militar para tanto. A diferença era que os revisionistas consideravam essa opção explicitamente.
Em seu livro Expulsions of the Palestinians – The Concept of “Transfer” in Zionist Political Thought, 1882-1948, Nur Masalha apresenta uma série de citações de lideranças sionistas que demonstram a predominância da ideia de transferência voluntária ou compulsória da população árabe local como base para a constituição de um estado exclusivamente judeu na Palestina. Segundo ele, essa ideia foi articulada desde cedo. “Theodor Herzl forneceu uma referência prévia à transferência mesmo antes de delinear sua teoria de renascimento sionista em seu Judenstaat.” Ainda conforme Masalha, em 12 de junho de 1895, visando a transição de uma “sociedade de judeus” a Estado, Herzl escreveu em seu diário:
Quando nós ocuparmos a terra, nos traremos imediatamente benefícios ao Estado que nos receberá. Nós precisamos expropriar com cuidado a propriedade privada nos estados alinhados conosco. Nós tentaremos, quando a população paupérrima cruzar a fronteira, procurar emprego a eles na mudança de países, enquanto vamos negar-lhes qualquer emprego em nosso próprio país. Os proprietários de terra virão para o nosso lado. Ambos, o processo de expropriação e a remoção dos pobres, precisam ser feitos discreta e circunspectamente.
Em um diálogo entre dois pioneiros do Hovevie Zion (Amantes de Sião), em 1891, também foi exposta a ideia de transferência. Um deles afirmou que a terra “na Judéia e Galiléia está ocupada por árabes”. Seu interlocutor respondeu: “É muito simples. Vamos assediá-los até que eles partam. Vamos deixa-los ir à Transjordânia.” Ainda de acordo com Masalha, Israel Zangwill – criador do lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra” – apresentou a remoção de árabes da Palestina como pré-condição para a realização do projeto sionista. Como indica o autor, o criador do poder militar do Yishuv [comunidade judaica] e primeiro premiê de Israel em 1948, David Ben Gurion, indicou a importância da ideia de transferência em várias citações em seu diário.
Também segundo Masalha, em carta a seu filho Amos, de 5 de outubro de 1937, Ben Gurion escreveu que
Devemos expulsar os árabes e tomar seu lugar […] e se temos que usar a força, não para despojar de suas propriedades aos árabes do Negev e Transjordânia, mas para garantir nosso próprio direito de assentamentos em ditos lugares, a força estará a nossa disposição.
Em 2 de novembro de 1917, o sionismo recebeu as bênçãos da Grã-Bretanha, com a emissão da Declaração Balfour. Nesta, a Inglaterra declarava-se favorável à constituição de um lar nacional judeu na Palestina, sobre a qual recebeu o mandato como espólio de guerra ao fim da Primeira Guerra Mundial (1939-1945) e a derrota do Império Otomano, que dominava a região. Inaugurava-se ali a aliança sionismo-imperialismo e uma longa história de cumplicidade internacional com os crimes contra a humanidade que são basilares ao Estado de Israel. A Declaração Balfour foi determinante para a execução do projeto colonial que tentaria – e segue a tentar – apagar do mapa os palestinos. E à época havia não mais do que 6% de judeus na Palestina.
Este primeiro crime revela dois inimigos poderosos da causa palestina, que seguem atuais: o imperialismo e o sionismo. Duas décadas depois, um terceiro inimigo era evidenciado: os regimes árabes, como indica o escritor palestino Ghasan Kanafani em sua análise sobre a derrota da revolta de 1936-1939 na Palestina contra o mandato britânico e a colonização sionista. Para ele, este foi o momento mais próximo em que se chegou da libertação, em que a ação dessa tríade de inimigos foi decisiva para soterrar.
Estava armado o cenário ideal para a execução da limpeza étnica. Os palestinos, absolutamente vulneráveis após a derrota, com as lideranças da revolução assassinadas ou presas, foram desarmados; não podiam sequer portar uma faca de cozinha. Enquanto isso, os anos subsequentes marcam o envio de armas pela União Soviética, via Thecoslováquia, para as gangues sionistas.
Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a conjuntura mundial favorecia os intentos sionistas. Embora tenha havido comprovadamente acordos com Hitler, como o de Haavara, os horrores nazistas foram bem utilizados como propaganda ao projeto colonial sionista. Slogans como “uma terra sem povo para um povo sem terra” e “faremos florescer o deserto” completavam o quadro. Como já demonstrado, os sionistas sempre souberam que havia uma população majoritariamente árabe na Palestina, que não era um vazio demográfico. Mas os consideravam um não povo, que deveria ser eliminado, portanto.
O destino da Palestina era selado na promessa ao imperialismo de o sionismo ser o que chamava de o posto avançado da civilização contra a barbárie. Ou seja, seu enclave militar na região do Oriente Médio e Norte da África, para seguir usurpando suas riquezas, numa região rica em petróleo e água subterrânea.
A história da Palestina é repleta dessas negociatas, à margem de uma vida palestina que seguia e se dava sobretudo nas áreas rurais, onde habitava a maioria de seus habitantes. E é sobre esta realidade que se impõe o terceiro crime determinante: a recomendação de partilha da Palestina em um Estado judeu e um árabe, praticamente meio a meio, com Jerusalém sob administração internacional, pela Assembleia Geral da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) em 29 de novembro de 1947, presidida pelo diplomata brasileiro Osvaldo Aranha.
Trinta e três países votaram a favor a partilha (Resolução 181): África do Sul, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bielorrússia, Canadá, Costa Rica, Dinamarca, República Dominicana, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Haiti, Holanda, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nova Zelândia, Nicarágua, Noruega, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, Suécia, Tchecoslováquia, Ucrânia, URSS, Uruguai e Venezuela. Treze votaram contra: Afeganistão, Cuba, Egito, Grécia, Iêmen, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Arábia Saudita, Síria e Turquia. E dez anularam: Argentina, Chile, China, Colômbia, El Salvador, Etiópia, Honduras, México, Reino Unido e Iugoslávia. Um estado não participou, a Tailândia.
O sinal verde para a limpeza étnica planejada, que se iniciaria 12 dias depois e culminaria na criação do Estado de Israel em 78% do território histórico da Palestina.
Plano Dalet
O plano que selou o destino dos palestinos foi o Dalet. O nome foi dado pelo Alto Comando Sionista, como revela Pappé. Segundo ele, “independentemente de se esses palestinos decidiam colaborar ou opor-se a esse estado judeu, o Plano Dalet propunha sua expulsão de forma sistemática e total de sua pátria”. Derradeiro, e o mais agressivo, este foi finalizado em reunião das lideranças sionistas no local que se convertera no quartel-general da Haganah, a Casa Vermelha em Tel Aviv – atual capital de Israel -, em 10 de março de 1948. Continha mapas indicando por onde os grupos paramilitares atacariam cada aldeia, como seriam essas incursões, a partir das informações de cada vila, coletadas nos anos 1940, descreve o historiador israelense:
Para elaborar o Plano Dalet, além de contarem com a hospitalidade dos seus habitantes, os sionistas criaram uma rede de colaboradores. Não obstante o desprezo que nutriam por essas pessoas, a ponto de um dos acadêmicos envolvidos na montagem desse plano – Moshe Pasternak – chegar a afirmar que seria difícil conseguir informantes entre elas, por seus modos primitivos, ao final, obtiveram algum resultado favorável aos seus intentos.
O Plano Dalet foi colocado em operação pelas organizações paramilitares Stern Gang, Irgun e Haganah. A tropa de elite dessa última, Palmach, passou de 700 membros em 1941 para 7 mil em 1948. Mais tarde, as três se fundiram para constituir as forças de ocupação.
Cada brigada, escreve Pappé, “recebeu uma lista das aldeias que deveria ocupar. A maioria estava destinada à destruição, e somente em casos excepcionais os soldados receberam ordens para deixá-las intactas”. A primeira operação, denominada Najsón, contou com a participação não apenas de todos os grupos paramilitares, mas incorporou veteranos judeus de guerra oriundos da Europa Oriental e outros recém-chegados. O objetivo foi a expulsão massiva da população das áreas rurais a oeste das montanhas de Jerusalém. A primeira aldeia a sucumbir nessa operação chamava-se Qastal (El Castillo).
Antes de Pappé e o inspirando, o historiador palestino Walid Khalidi já afirmava que o Plano Dalet foi executado com o objetivo deliberado de expulsar a população árabe da Palestina e destruir essa comunidade para colocar em prática o projeto sionista de constituição do Estado judeu naquelas terras.
Segundo Rashid Khalidi em "The Iron Cage", o argumento de saída dos árabes antes de maio daquele ano como simples subproduto de uma guerra que esses perderam é “base para a negação da responsabilidade pelos refugiados”. Para ele, essa visão ignora o fato de que, em muitos casos, os palestinos não estavam em luta. Ignora também a desigualdade de forças.
Pappé revela ainda que é de se admirar que os estados árabes tenham conseguido pôr quaisquer soldados no campo de batalha. Somente no final de abril de 1948, os políticos do mundo árabe prepararam um plano para salvar a Palestina, que na prática era um esquema para anexar a maior área possível do seu território aos países árabes intervenientes na guerra. A maior parte desses exércitos possuía uma experiência de guerra muito limitada e um treinamento muito sumário quando o mandato chegou ao fim. A coordenação entre eles era deficiente, bem como a moral e a motivação dos soldados, com exceção de um grande grupo de voluntários, cujo entusiasmo não bastava para compensar a sua falta de perícia militar. Ele é categórico: "O mundo árabe, os seus líderes e sociedades juraram salvar a Palestina. Os políticos não estavam propriamente a ser sinceros; é provável que os soldados e seus comandantes tivessem um empenho mais genuíno."
No caso da Jordânia, houve inclusive um acordo tácito com Israel às vésperas da guerra, de partição do território. Os líderes hachemitas de fato controlariam uma parte da Palestina (atual Cisjordânia) até 1967, quando essa passou a ser ocupada militarmente por Israel. Juntamente com o futuro estado judeu, dividiriam ainda o domínio de Jerusalém. Outra parte do território (Faixa de Gaza) ficaria sob administração egípcia até aquele ano.
Relatos e documentos dão conta das táticas utilizadas pelos grupos paramilitares sionistas. De posse das informações de cada local, enquanto em boa parte das aldeias há indicações de que a estratégia era atacar deixando-se uma única saída para os habitantes saírem rumo a países árabes vizinhos, em outras, cercava-se dos quatro lados, não havendo como escapar. Nessas, os massacres e atrocidades são descritos por historiadores como Ilan Pappé. Serviram de propaganda para expulsar os palestinos que viviam em aldeias vizinhas.
As operações dos grupos paramilitares privilegiaram no começo centros urbanos, como Haifa, então o principal porto do país, designada na partilha ao que viria a ser o estado judeu. A elite já havia abandonado a cidade, quando dos primeiros ataques em dezembro de 1947. Em abril do ano seguinte, os sionistas tomaram a cidade, o que culminou no êxodo dos habitantes palestinos – que somavam mais de 50 mil. Outras grandes cidades, como Acre e Safed, tiveram o mesmo destino. Jerusalém também não ficou impune. À sua captura, as forças sionistas conduziram 30 operações, sendo sete delas entre dezembro de 1947 e 15 de maio de 1948 – todas em áreas destinadas na partilha ao Estado árabe. Os bairros do lado oeste foram atacados e ocupados no período. Segundo Salim Tamari em "Jerusalem 1948",
Os objetivos dessas operações eram dois: (1) limpar o caminho entre Tel Aviv, Jaffa e Jerusalém para livre movimentação das forças judaicas; (2) limpar as vilas árabes do flanco oeste de Jerusalém da população palestina para prover déficit demográfico e um vínculo entre a proposta do Estado judeu e a cidade de Jerusalém, conforme o Plano Dalet.
Os britânicos permaneceram na Palestina até 15 de maio de 1948 – um dia depois da unilateral Declaração de Independência de Israel. Assim que a Inglaterra partiu, os Estados Unidos reconheceram o Estado sionista. Dois dias depois, foi a vez de a União Soviética fazê-lo, de fato e de direito. Na sequência, mais países deram o mesmo passo. As consequências para os palestinos não foram levadas em conta. Naquele momento, dois terços da população árabe local foram deslocados. Embora houvesse dezenas de observadores da ONU, conforme Pappé, eles nada fizeram a respeito. Exceção ao emissário Conde Folke Bernadotte, que propôs a revisão da divisão do país em duas partes e o retorno incondicional dos refugiados palestinos. Tendo chegado à Palestina em 20 de maio de 1948, foi assassinado por “terroristas judeus” em setembro do mesmo ano, quando repetiu sua recomendação no informe final que apresentou à ONU.
Ao final, foram três fases da limpeza étnica, descritas por Pappé. A primeira foi inaugurada em dezembro de 1947, dias após a partilha recomendada pela ONU, e se prolongou até maio de 1948. A segunda, entre esse mês e janeiro de 1949, incluiu bombardeios aéreos indiscriminados e disparo de canhões em bairros com populações mistas. Durante essa etapa, foram assinadas duas tréguas e, ao final, um armistício entre os exércitos árabes e Israel. A terceira fase do Plano Dalet se prolongou até 1954. Na parte designada pela ONU ao recém-criado Estado de Israel, de 818 mil palestinos, restaram apenas 160 mil. A despeito das diferenças, conforme a metodologia adotada, fato é que a paisagem foi totalmente transformada, como escreve Pappé:
A Palestina tornara-se agora uma nova entidade geopolítica, ou antes, três entidades. Duas delas, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, encontravam-se mal definidas, a primeira totalmente anexada à Jordânia, mas sem o consentimento ou entusiasmo da população; a segunda num limbo, sob um regime militar, com os seus habitantes impedidos de entrar em território egípcio propriamente dito. A terceira entidade era Israel, decidida a judaizar todas as partes da Palestina e a construir um novo organismo vivo, a comunidade judaica de Israel.
Ocupação avança
De lá para cá, a expansão colonial segue impunemente, sob a cumplicidade criminosa da mesma “comunidade internacional” que a ratificou. Em 1967, Israel ocupou o restante da Palestina (Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental), no que é conhecido como "Guerra dos Seis Dias". Mais 350 mil novos refugiados. Não obstante o argumento sionista de que a ocupação se deu em resposta a tal "guerra", fato é que integra historicamente o projeto de colonização de toda a Palestina.
A ocupação exclusivamente destes 22% é reconhecida como ilegal pela ONU e comunidade internacional, que insiste em defender a solução de dois estados, a qual Pappé afirma estar morta. Não bastasse ser injusta desde sempre, está inviabilizada pela expansão colonial. Por essa razão, tem se ampliado entre palestinos, inclusive aqueles que até então não viam outra saída que não aceitar o mínimo, a defesa de que se retome o que estava previsto na carta inaugural da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), fundada em 1964, que declarava: “A Palestina, com suas fronteiras existentes no tempo do mandato britânico, é uma unidade regional integral.”
Oslo, um novo desastre
Contudo, esse programa foi abandonado em fins dos anos 1980. E o ano de 1993 marca um trágico e definitivo ponto de inflexão na história de luta da OLP, quando esta assina com Israel, sob mediação do imperialismo estadunidense, os desastrosos acordos de Oslo – na esteira de poderosa Intifada (levante popular) iniciada em 1987.
O aperto de mão em 13 de setembro daquele ano entre seus líderes, Yassir Arafat e Yitzhak Rabin, em frente à Casa Branca e sob os olhares atentos de Bill Clinton, foi transmitido ao vivo pelos canais de TV de todo o mundo. Um espetáculo midiático para ninguém botar defeito. Há muito tempo a promessa de paz demonstra que não passou de fake news.
Em seu propósito mascarado sob o manto da paz e da coexistência, Oslo foi absolutamente bem-sucedido. Representou uma oportunidade a Israel sedimentar seu projeto colonial e de apartheid, consolidando uma economia dependente dos lucros com a ocupação. Desmobilizaria, para tanto, a solidariedade internacional e enfraqueceria a resistência palestina.
Firmando o reconhecimento mútuo entre OLP e Israel, os acordos basearam-se na proposta de dois estados. A ideia difundida ao mundo era de que o controle desse pedaço passaria às mãos dos palestinos gradativamente. Inicialmente, a Cisjordânia se manteria dividida em áreas A (sob administração da então criada Autoridade Palestina – AP, equivalente a 18%), B (mista, entre Israel e AP, 22%) e C (sob controle militar exclusivo israelense, 60%). Logo à sequência da assinatura, Israel ampliou a construção de assentamentos e aparatos como estradas exclusivas para colonos que impediram qualquer autonomia por parte da liderança palestina. Um ano depois, como complemento, foram firmados os Protocolos de Paris, que selaram a consequente cooperação de segurança da AP com Israel – em outras palavras, a Autoridade Palestina passou a gerenciar a ocupação, reprimindo a resistência palestina.
A questão econômica é chave nesse processo: qualquer fundo, importação ou exportação por parte da AP desde então estão sujeitos a repasse israelense, que assegurou o controle sobre a circulação em terra, mar e sobre as fronteiras. Fruto desse processo, uma nova classe capitalista surgiu na Palestina ocupada – atrelada ao projeto sionista.
Como aponta a jornalista Naomi Klein em seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre”, Oslo foi um ponto de virada numa política que sempre teve na sua base a limpeza étnica dos palestinos. Simultaneamente, Israel passou a se apresentar, nas palavras da jornalista, “como uma espécie de shopping center de tecnologias de segurança nacional”. Em seu livro, a autora afirma que, ao final de 2006, ano da invasão israelense do Líbano, a economia do Estado sionista, baseada fortemente na exportação militar, expandiu-se vertiginosamente (8%), ao mesmo tempo em que se acentuou a desigualdade dentro da própria sociedade israelense, e as taxas de pobreza nos territórios palestinos ocupados em 1967 alcançaram índices alarmantes (70%).
Acordo do Século
Após várias negociações que jamais poderiam garantir justiça, pois sempre se deram normalizando a Nakba de 1948 - e, portanto, não trazendo questões chaves como o direito inalienável de retorno dos milhões de refugiados as suas terras -, em janeiro deste ano Trump anunciou unilateralmente o chamado “Acordo do Século” diante de um sorridente Netanyahu, que declarou: "Neste dia, você [Trump] se tornou o primeiro líder a reconhecer a soberania de Israel sobre Judeia e Samaria, vitais para nossa segurança e centrais para nossa herança.” Uma legitimação da anexação da Cisjordânia pelo sionismo e a expansão colonial em curso, que já alcança 85% da Palestina histórica e segue a todo vapor, mascarada por um mundo assombrado pela pandemia de Covid-19.
Velhos argumentos foram retomados ao anúncio do malfadado “Acordo do Século”. “Oportunidade histórica” e “última chance para a paz” pululam entre as frases dos seus defensores. O acordo tem semelhanças com Oslo, como a questão da gradatividade em sua implantação. O tal “Estado palestino” – em talvez metade do território previsto na dita “solução de dois estados” – não passa de uma ficção e só seria criado em quatro anos. Abu Dis, um pequeno vilarejo que reúne refugiados palestinos deslocados internamente, em Jerusalém, seria possivelmente a capital desse imaginário futuro estado.
Assim como Oslo, não resolve obviamente questões chave, como o direito inalienável de retorno dos milhões de refugiados palestinos as suas terras e o direito à água. Mas consegue ser ainda pior. Sem a presença palestina e sob seu rechaço, está mais para uma versão contemporânea da Declaração Balfour.
Fruto de um processo que já dura três anos, o “acordo do século” traz entre seus pontos o reconhecimento de Jerusalém como capital indivisível de Israel, o não desmantelamento dos assentamentos ilegais e a anexação definitiva pelo Estado sionista do Vale do Jordão – fundamental para garantia de água à sobrevivência palestina.
Do ponto de vista econômico, Trump promete 50 bilhões de dólares em ajuda ao “futuro Estado palestino” para reduzir os níveis elevados de pobreza e desemprego resultantes da mesma ocupação ilegal que seu acordo avaliza. Uma tentativa de “comprar” a liderança, que se estende também a negociações com os regimes árabes. A resposta dos palestinos, contudo, é efusiva e vem sendo repetida há tempos: “A Palestina não está à venda.”
O secretário de Estado americano, Mike Pompeo, em meio à tragédia que assola os Estados Unidos, com mais de um milhão de casos confirmados de Covid-19 e 80 mil mortes, foi para Jerusalém nesta semana levar a cabo sua agenda. Um dia antes da posse do governo sionista de coalizão Gantz-Netanyahu, reiterou o plano imperialista-sionista de anexação previsto no dito “Acordo do Século” a partir de julho próximo. Disse ser uma decisão que as lideranças israelenses têm o direito de tomar, mas em coordenação com Washington.
Por ser demasiado descarado em seus propósitos coloniais, o “Acordo do Século” tem recebido condenação internacional. Não obstante, os mesmos que o condenam são cúmplices. Não tivessem historicamente normalizado as violações cometidas pelo sionismo – o que continuam a fazer –, não haveria tal plano.
A Nakba de 1948, que saudaram ao reconhecer o Estado de Israel, não pode ser descolada desse processo. Como destaca a jornalista Ramona Wadi em artigo de sua autoria no portal Alaraby, “Trump e Netanyahu estão agindo sobre um legado de impunidade pela violência colonial que foi tacitamente aprovado (...).” Ela continua: “Sem nenhuma censura política, os invasores coloniais conquistaram o status de vizinhos. Essa foi a afirmação clara da comunidade internacional de que o povo palestino era agora um apêndice à sua própria história, em vez de ser protagonista.”
Ainda conforme a autora, “a expansão dos assentamentos coloniais de Israel forneceu uma agenda perpétua para a ONU. A violação em andamento - classificada como crime de guerra pelo Tribunal Penal Internacional em suas investigações preliminares de denúncias apresentadas pela Autoridade Palestina – tem sido rotineiramente deplorada pela comunidade internacional, mas nunca como parte da Nakba do povo palestino em curso”.
Como corretamente identifica Wadi, ao condenar apenas a anexação e suas consequências, ignorando que é continuidade da catástrofe de 1948, a comunidade internacional segue nessa “normalização”. O que é ainda corroborado pela Autoridade Palestina, observa Wadi: “Sua dependência da ajuda internacional para sustentar sua hierarquia garante que cada abertura à ONU se baseie em ajudar esta a salvar a diplomacia de dois estados. Assim, a anexação israelense também é normalizada pela liderança palestina, apesar de o líder da AP, Mahmoud Abbas, ameaçar interromper todos os acordos com Israel.”
Wadi é categórica: “Se a comunidade internacional se opusesse à Nakba de 1948 ou tentasse responsabilizar Israel, a desconexão entre as violações históricas e as atuais não teria ocorrido. Em vez disso, a ONU implementou uma narrativa falsa que dissocia a história da atual violência política, como se a primeira não fosse um produto da tomada de decisões colonial e, portanto, política.”
A situação em tempos de pandemia
Desde a Nakba, a sociedade palestina segue fragmentada. Estima-se que seja formada por aproximadamente 13 milhões de pessoas, segundo o Centro de Estudos Badil, 66,7% na diáspora ou em campos de refugiados nos países árabes – nos quais as condições são precárias e já há, em alguns, casos confirmados de Covid-19 (e os Estados Unidos cortaram verbas para a UNRWA – a Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados Palestinos, o que torna ainda mais preocupante essa situação).
Dois milhões vivem em Gaza sob cerco desumano há 13 anos e bombardeios israelenses frequentes que destruíram a infraestrutura – inclusive hospitais. Mesmo assim, o resultado no enfrentamento à pandemia é surpreendente. Na segunda quinzena de março foram registrados os primeiros casos confirmados de Covid-19 e hoje há apenas 20.
Cerca de 3 milhões de palestinos vivem na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, sob ocupação criminosa e regime institucionalizado de apartheid. Somando-se aos de Gaza, nesses territórios palestinos ocupados em 1967, já são mais de 14 mil casos suspeitos de Covid-19, 548 confirmados e quatro mortes. Uma das maiores ameaças – que vem sendo enfrentada exclusivamente graças à auto-organização palestina – segue sendo Israel, que propagandeia ao mundo sua falsa imagem de salvador de vidas, ao informar o desenvolvimento em curso de medicamentos e vacinas.
Além desses, há cerca de 1,8 milhão de palestinos nos territórios ocupados em 1948 (“Israel”), submetidos a 60 leis racistas, entre os quais residentes de dezenas de aldeias não reconhecidas pelo Estado sionista, em que não chegam sequer serviços básicos (ao início da pandemia, até ambulâncias estavam vedadas aos palestinos de tais vilarejos - e aos demais não estavam sendo destinados testes e havia discriminação no acesso a tratamento). Sessenta mil trabalhadores palestinos que vivem na Cisjordânia, mas são obrigados a passar por um checkpoint como gado para servir de mão de obra barata a seus patrões sionistas, receberam “permissão” para ficar em Israel por dois meses, durante a pandemia – enquanto israelenses eram colocados em quarentena.
Apesar da trágica situação imposta pela colonização e racismo, os palestinos seguem dando exemplo ao mundo. Enfrentam a pandemia mesmo com todas as restrições e obstáculos, ao mesmo tempo em que fortalecem a resistência à anexação de mais terras, à Nakba contínua. Israel intensifica a repressão e violência: as prisões políticas, sobretudo de crianças, já se expandiram em 6% no último período, totalizando 194 menores, submetidos a tortura institucionalizada e maus tratos. Isso ocorre enquanto Israel liberta 500 de seus presos comuns em função da pandemia. Mantém, por outro lado, encarcerados 5 mil palestinos, em situação de ampliada negligência, vulnerabilidade, em celas mal ventiladas e superlotadas. Já há casos confirmados de Covid-19 entre os presos políticos, cujo único crime é resistir heroicamente.
Os palestinos se negam a desaparecer do mapa, há 72 anos. Nas memórias da Nakba, que mantêm viva, na sua poesia e literatura, nas pedras contra tanques e nos chamados a campanhas de solidariedade internacional – como a de BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel –, a resistência é permanente. Segue a inspirar oprimidos e explorados em todo o mundo. Que neste 15 de maio eleve-se a solidariedade internacional rumo à Palestina livre. Tremulem em todo o mundo bandeiras palestinas, símbolos das lutas justas em todo o mundo.
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Soraya Misleh, membro da Diretoria do ICArabe, jornalista palestino-brasileira, mestre e doutoranda em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro “Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina” (Ed. Sundermann).
Referências:
BENVENISTI, Meron. Sacred Landscape – The Buried History of the Holy Land since 1948. Translator: Maxine Kaufman-Lacusta. California: University of California Press, 2002.
HERZL, Theodor. O Estado judeu. Trad. David José Perez. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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