Hipocrisia elevada ao máximo
Querer fazer com que os árabes esquecessem seu idioma e suas tradições durou séculos e, salvo alguns maus exemplos, ninguém seguiu os esforços otomanos. Um amigo de meu pai estava dizendo numa roda como era o estudo em Damasco, sob ocupação turca, e nos deu um exemplo: discorreu durante alguns minutos para explicar o que era Geografia e, apesar da quase totalidade dos ouvintes entender o árabe, ninguém entendeu. Senhor Tufic Al-Hauache explicou: “Falei em turco e não em árabe, é que sob o domínio turco ou você decorava, a definição de Geografia, por exemplo, e recitava sem saber o que estava dizendo ou era severamente punido e raras vezes você escapava da palmatória e era condenado a ficar em pé olhando para a parede até o final da aula.”
Todos nós conhecemos o holocausto armênio e somos testemunhas da perseguição turca aos curdos. Hoje em dia, tudo o que acontece de mal na Turquia é atribuído aos curdos, um povo ao qual é negado o direito a um Estado soberano, dentro de fronteiras definidas. No caso turco, não só a Turquia nega este direito aos curdos, como outros mais na região. Um direito que parece estar na moda, na região, quando se trata de um povo dominar o outro, pois Israel nega este mesmo direito aos palestinos.
Este assunto veio a baile devido às notícias deste fim de maio de 2016 que dão conta de que as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos, engajadas localmente, na Síria para sermos mais precisos, ao lado das milícias autoproclamadas Forças Democráticas Sírias, na realidade uma coalizão quase que totalmente curda lutando contra o Estado Islâmico, estão participando (os gringos) na ofensiva desta semana para ocupar nesgas de território ao norte de Raqqa.
Os combatentes da tal FDS explicaram que as tropas estadunidenses estavam engajadas na recente captura da cidade de Fatisah usando mísseis antitanques com intenção de destruir carros-bombas do EI que se aproximavam de posições da FDS.
O crescimento do envolvimento dos Estados Unidos na Síria, em ritmo vagaroso crescente, que era de 50 combatentes, autorizados pelo presidente Barack Obama, no ano passado passou agora para 300. Duvida-se que estes dois números sejam verídicos, assim como a insistência do Pentágono declarando que “os soldados ficam muito atrás das linhas de frente como instrutores de rebeldes árabes e curdos.” Como se tem visto, a linha entre instruir e combater é muito tênue.
Até aí, nada de novo e quem conhece os acontecimentos regionais já sabe que há muito tempo os Estados Unidos participam com suas forças na guerra da Síria, pelo lado contrário ao Governo legal sírio, mas a novidade é que os soldados estadunidenses usavam patches (turbantes) pertencentes às milícias das Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG), conforme o Pentágono confirmou declarando “não ser incomum que tropas estadunidenses usassem insígnias de forças locais como precaução” pretendendo assim diminuir o significado político de uso de vestes curdas. Fica difícil saber quando o Pentágono fala a verdade ou não.
É aí que entra a Turquia reagindo raivosamente por considerar os YPG como braço terrorista do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), organização considerada pela Turquia com um de seus principais inimigos – obviamente por lutarem pelos direitos de seu povo. O Governo turco declarou, na voz de seu Ministro do Exterior, Mevlut Cavosoglu, que “É inaceitável que um país aliado esteja usando insígnias das YPG. Reagimos contra isto. Isto é impossível de ser aceito. Este é um duplo padrão de hipocrisia.”
Por outro lado, o Embaixador da Rússia nas Nações Unidas, Vitaly Churkin, horas depois, acusou a Turquia de fornecer materiais ao Estado Islâmico para que este fabrique explosivos de alto poder. A acusação russa é baseada em análises químicas de explosivos apreendidos em Kobane, na Síria e em Tikrit, no Iraque. A Turquia reagiu minutos depois à acusação como “o mais recente exemplo da campanha de propaganda da Rússia contra a Turquia e, por esta razão, não pode ser considerada com seriedade.”
É uma pena que o senhor Tufic tenha morrido há decênios, pois ele era profundo conhecedor da Turquia e suas mazelas e poderia nos ajudar a interpretar as atitudes hipócritas turcas, elevadas ao máximo.
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