Última chamada*
Em reportagem publicada no Al-Ahram Weekly, um retrato de Sayed Darwish, um dos músicos mais importantes do Egito, artista que se confunde com a própria história nacional do país. Sua casa está em ruínas e o governo egípcio não mostra qualquer consideração pelo legado do músico.por Abeer Anwar Logo depois de sua morte trágica em 15 de setembro de 1923, Sayed Darwish, nascido em Koum Al-Dekka, Alexandria, em 17 de março de 1892, foi logo identificado como um pioneiro da música árabe. Ele tem sido desde então celebrado como um líder da renascença cultural da virada do século, a maior voz da revolução de 1919 e, sem dúvida, o primeiro expoente do som de raiz egípcio. Ele era filho de um homem pobre e permaneceu mais ou menos dessa forma por toda sua curta vida, vivendo grande parte dela em um pequeno flat no 112 da Haj Badawi, que saía da rua Al-Souq, na qual ele tinha nascido. Ele era o único filho homem, nascido depois de três mulheres – Farida e Satouta já estavam casadas; Zeinab casou-se e mudou-se quando ele tinha 10 anos – e, logo, foi mimado pelos pais. Ele ainda trabalhou em construção para ajudar a sustentar seus pais; a lenda conta que, ao ser ouvido por um produtor de uma trupe musical enquanto ele liderava seus colegas de trabalho em uma cantoria, ele foi contratado no ato. Como músico, ele pegou o pulso das pessoas, produzindo músicas que eram distintas por serem verdadeiras para sua identidade coletiva e aspirações nacionais. Visite Koum Al-Dekka, entretanto, e você encontrará a antiga casa de Darwish em ruínas, quase 120 anos depois de seu nascimento. “Tornou-se escombro anos atrás”, diz Mohamed Awad, ex-presidente do Centro pela Preservação da Herança Cultural de Alexandria, “quando pessoas não-identificadas começaram a colocá-la abaixo”. Uma cerca que mal fica em pé e um pátio todo em escombros: isto é tudo o que resta da moradia do Artista do Povo, lugar onde produziu sua música. E a demanda pública para tornar a casa de Darwish em um museu caiu em ouvidos surdos. De acordo com Raouf Sharkas, um habitante que escutava ao Sheik Sayed ao vivo, “este artista talentoso colocou Koum Al-Dekka no mapa cultural; como você pode ver, cada café pendura seu retrato na parede. A casa de um homem como ele deveria ser tratada respeitosamente, com cuidado – pessoas como Sayed Darwish refletem nossa cultura, nossa história e nossa identidade árabe”. Se o apartamento de C P Cavafy foi transformado em um museu, ele completa, por que não o de Sayed Darwish? Outros vizinhos, como Mohsen Farid, concordam: “Eu vejo pessoas em todo o mundo cultuando lugares que grandes políticos, artistas e músicos apenas visitaram, nem mesmo viveram”. Ele se recorda de uma pequena cidade na Rússia na qual uma casa muito simples foi transformada em museu simplesmente porque Chekov tinha passado lá uma noite. Por sua parte, Abu Mahmoud, o sapateiro da vizinhança, relembra Darwish passando tempo com pessoas de diferentes ocupações, cantando para elas (algo que ainda é evidente em suas operetas, nas quais os jargões e os ritmos das diferentes profissões são evocados com uma vividez surpreendente): "quando era criança, amava escutá-lo. Ele era muito humilde e simpático com as crianças”. O reparador de bicicletas local, Ibrahim Hassan, e o dono da ferraria, Abu Mohamed, ambos recordam momentos especiais com Darwish que evidenciam seu amor pelos pobres, especialmente os jovens – como os dois na época. Abu Mohamed diz que “ele amava cantar para os pobres e humildes. Como crianças pequenas, nós nos sentávamos perto dele e ouvíamos por horas – aquelas canções ainda estão gravadas em nossas memórias”. Por que ninguém está interessado na casa de Darwish, eles perguntam. “É por que acontece de ela estar localizada em Koum Al-Dekka?”, Hassan desafia. “Nós todos amávamos ele, relembrando suas canções, nós sentimos que ele ainda está entre nós”. O pintor alexandrino Esmat Dawastashi diz que existiram planos de restauração que repentinamente foram interrompidos, como parece acontecer com muitos outros projetos governamentais: “em 1995, o ministro da cultura constituiu um comitê para estudar maneiras de restaurar Koum Al-Dekka, de repente tudo parou”. Hassan El-Bahr Darwish, neto do músico, diz que a casa tem 57 m2 e consiste de três quartos e um pequeno hall de entrada. “Sayed Darwish nasceu em um desses quartos”, ele completa. “A casa não tem pilares; foi construída em argila no estilo rural”. El-Bahr relembra que o Rotary Club de Alexandria propôs restaurar a casa muitos anos atrás, mas sua oferta simplesmente desapareceu. Ele recentemente recusou-se a vender a propriedade para organizações culturais estrangeiras, que tinham planos similares: “isto é nossa herança egípcia e nós somos capazes de tomar conta dela; tudo que precisamos é prestar um pouco mais de atenção a este projeto em particular”. Koum Al-Dekka tem outros motivos para se orgulhar da fama. Foi um dos maiores distritos industriais, conhecido por exportar móveis para a Itália. Em 1882, foi centro de operações para a luta armada contra a invasão do exército britânico – um espírito mantido em algumas da mais conhecidas músicas de Darwish, incluindo o atual hino nacional. E, de fato, o lugar retém algo do espírito de seu dono. * O texto acima foi publicado na edição 839 do jornal Al-Ahram weekly